E assim nasci no ano de… esqueci-me! Ou talvez nunca tenha sabido.
William dizia-me que nem tudo era importante, se a peça tivesse qualidade, e as dele tinham, o público guardaria algumas personagens no seu coração, deste modo para uns nasci num ano, para outros noutro. Houve uma jovem que me imaginou precocemente a quebrar corações aos nove/dez anos, ainda hoje penso que me confundiu com o D. Juan!
Com o tempo aprendi que não precisamos (nós, as personagens) de termos toda a nossa vida escrita, determinada. Não é só o escritor que possui poder, nós também sonhamos, e quando o escritor nos dá um dia de férias na obra, podemo-lo utilizar para o que quisermos, o público nunca saberá. Eu, por exemplo, adoro imaginar/escrever a minha vida antes da obra de meu pai. A vida é minha, posso escrevê-la se quiser, ora!Se não concorda pense nisto, por acaso sabe o que fiz enquanto estive em Mântua? Shakespeare nada vos diz acerca disso, pensam que terá sido esquecimento?
Nasci no ano da Graça de Nosso Senhor de 1595, filho único nascido no seio da família Montecchio. Como a maior parte das crianças tenho as mais belas recordações de meus pais. Lembro-me de meu pai colocar-me no seu colo e contar-me histórias, contava-me apaixonadamente dos nossos antepassados e também daqueles que viveram em Verona, meu pai romanceava a construção do anfiteatro romano e como eu ficava maravilhado com a força de vontade e inteligência daqueles romanos que partindo de uma pequena região ocuparam o mundo conhecido quase todo.
De minha mãe fiquei com a imagem de alguém temente a Deus, que me amava e me acarinhava, sempre que possível. Lembro-me de um dia em que com oito ou nove anos e passeando com um aio vi um raposinho, segui-o com todos os cuidados, não muitos já que a início parecia que ele queria sobretudo brincar, quando o vi esconder-se debaixo de umas moitas, o aio com medo de que algo me pudesse acontecer tentou impedir de me acercar mais, mas eu criança vendo pela primeira vez um raposinho vivo era consumido cada vez mais pela novidade e curiosidade. “A curiosidade matou o gato” diz o povo e eu só não morri porque o meu aio estava atento com medo que algo me acontecesse, isto porque das moitas surgiu um vulto, era a raposa mãe que ferida, tentava ainda proteger a sua cria. Vendo aquele vulto aproximar-se Alfredo, o meu aio desviou-me e puxou-me para trás, fazendo-me compreender que necessitaríamos de algum cuidado para que nenhum mal acontecesse. A raposa, no entanto, vendo-nos recuar, recuou também para o seu refúgio onde se deitou lambendo a sua ferida e dando, ainda assim, de mamar ao seu filho. Esta história ajuda a ilustrar a relação com a minha mãe enquanto petiz, mesmo extenuada (e não ferida, como na história) ou com algo mais para fazer a minha mãe estava sempre pronta para me proteger, alimentar física e espiritualmente, explicando-me sempre o que lhe pedia, mostrando sempre uma paciência infindável para o miúdo irrequieto que eu era.
Foi por volta dos meus doze anos que se juntou a mim e a Benvólio, meu primo e já companheiro de algumas aventuras, Mercúcio parente do Príncipe e meu fiel amigo. Começou nessa altura uma cumplicidade tamanha que iria terminar com as nossas mortes, pelo destino Benvólio foi o último a morrer, morrendo já velho com o desgosto dos seus dois grandes amigos não poderem estar com ele nos momentos de felicidade, tais como o nascimento dos seus dois filhos (valentes varões) e da Rosa do seu coração, bela fidalga como nunca os Montecchio tinham visto (nem minha mãe era tão formosa e como era minha mãe bela!).
Com Benvólio e Mercúcio lembro-me de ir a cavalo para o Lago Garda, a menos de quarenta quilómetros de Verona, ao princípio da manhã, abrigando-nos do frio, quando caso disso, mas indo sempre para um local secreto, falando sempre disto e daquilo, tomando banho, pescando e fazendo mil e uma coisas que só os jovens têm paciência para fazer.
Embora fôssemos grandes amigos, fomos trespassados por algo que cruza qualquer relação de amizade, o amor. Talvez fosse eu o mais propenso a apaixonar-me , não sei, apaixonei-me ou fiz que, por uma jovem florentina que estava de passagem. O amor era nulo, a atração já o não era tanto e sempre era desculpa para umas complicaçõezitas, os rapazes não podem ser completamente santos, fica(va) mal. O pai dela vendo que certo Montecchio pairava sempre por sua casa, e sendo ele amigo fiel dos Capulleto arranjou maneira de me magoar (pensava ele), marcando casamento entre sua filha e um Capuleto e convidando-me para o casamento como sinal de desplante, ora eu que nessa altura teria os meus catorze anos, nem fiz caso e no dia do casamento fui para o Lago Garda, onde fiquei alguns dias. Benvólio tinha-me feito companhia durante todo esse tempo, enquanto Mercúcio tinha ido ao casamento, quando chegámos a casa e deixando os cavalos a descansar, aparece-nos Mercúcio rindo e gracejando porque nunca tinha visto noiva mais triste, “ e já as vi tristíssimas, mas nunca como esta”, contou-nos então que a rapariga estava apaixonada por fidalgo de Florença, que já se tinha decidido a pedir sua mão a seu pai, mas seu pai, temendo um avanço meu, metera na cabeça que ela deveria casar com um Capuleto, este já com alguma idade e com tal cara que dinheiro nenhum lhe comprara ainda mulher. A pobre moça estava desconsolada e eu deveria temer pela minha pele repetia-me Mercúcio com alguma dose de preocupação, preocupação que se mostrou infundada já que nada aconteceu. Mercúcio confidenciou-me mais tarde que tinha medo que o florentino viesse ver a sua antiga amada e eu fosse dado por culpado daquela situação. Ao que sei o florentino casou com uma rapariga mais bela e com maior dote, da rapariga a última notícia que tive era que estava aumentando a sua descendência a olhos vistos.
A minha vida anterior foi assim alegre, amado e protegido na infância, despreocupado e com alguma dose de loucura na adolescência. Foi então que meu pai me retirou a acção e colocou-ma na ponta da pena fazendo da minha vida uma das mais famosas tragédias de sempre, desta minha vida já vocês têm (espero) um certo conhecimento mas serei fiel ao propósito de contar a(s) minha(s) vida(s) e darei a minha visão dos factos.
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