Sunday, June 12, 2005

Automitografia (4ªpt)

O limbo pode ter o sentido de local para onde se deita o que já não é útil, eu já não me considero muito útil, mas daí a ser um inútil, enfim! Gostaria que encarassem o limbo literário como uma dimensão para onde nós, personagens e locais da literatura, vamos depois de acabadas as histórias ou estórias. Seria de muito mau gosto que logo após a nossa utilização morrêssemos. Ora eu nunca estive tão vivo, em cada leitura eu revivo, em cada adaptação (seja teatral ou cinematográfica) eu ganho mais força e é nesta força e no vosso coração que eu continuo vivo. Vejam o limbo literário como um local para onde todos nós personagens vêm depois do fim. Nós não morremos, estamos só à espera da próxima chamada, cada vez que precisam de nós, falam em nós, é aqui que nos vêm tocar à porta. É esta a nossa última morada e que bela morada, esta tem sido.
Não imaginam a minha alegria quando após morrer, abri os olhos e vi Tebaldo e Páris olhando para mim de uma forma benevolente, pedindo desculpa por tudo o que tinha acontecido entre nós, explicando-me que a culpa não era deles, nós eramos simplesmente uma essência, a essência Shakespeariana. Não foi muito difícil de compreender, (já que todos nós tinhamos falado com o nosso criador) mas no momento seguinte senti uma mão no meu ombro, era a de Mercúcio e logo a seguir vi Julieta a materializar-se e a abraçar-me. Oh, que felicidade!
Mas a minha história não acaba aqui, nem assim. Após estarmos todos juntos contámos uns aos outros o que tínhamos vivido, e fizemos daquele local a nossa segunda casa, isto porque de vez enquando somos chamados por alguém (leitores, encenadores, espectadores, ouvintes), mas no fim cá nos encontramos todos. Mas não pensem que este limbo é só de personagens da minha história ou época, não!
Se querem saber fiz por aqui amigos, alguns dos quais bastante interessantes. Um dia estava a passear com Julieta, quando um desconhecido ofereceu-lhe uma rosa. Eu estava pronto para desembainhar a minha espada, mas Julieta não aceitou a flor, levou-me à razão e continuámos a andar. O estranho correu atrás de nós pediu-nos desculpa e passamos uma tarde inteira a falar com ele. Ele também é um fidalgo, chama-se D. Juan e é espanhol. Disse-nos que passa a vida (literalmente) à procura da mulher ideal, até hoje sem sucesso, vemo-lo pouco, mas sentimos pena dele porque para mim e Julieta foi fácil encontrar o verdadeiro amor, para ele nem por isso. Somos também muito amigos de um casal italiano: Dante e Beatrice, se bem que já nos confidenciaram que o nome verdadeiro dela não é Beatrice, no entanto teimam em não nos dizer o nome verdadeiro, sabe-se lá porquê. Eu morri por amor a Julieta mas este homem foi ao Inferno resgatar a sua amada, dão-me arrepios só de pensar em tão horrível local, mas analisando o caso, foi mais difícil ir até ao reino de Mefistófeles do que engolir um frasco de veneno. Tenho um grande respeito por este homem.
Está cá também um português, Carlos da Maia é o seu nome, contou-nos a sua triste história, ia casando com a sua irmã. Os leitores dirão que este mundo é louco, não sei. É o meu, só posso fazer o melhor que puder para me sentir feliz nele. Mas não há dúvida que é um mundo rico, existem pessoas/personagens de todo o mundo, de várias épocas, todos nos damos bem, devemos isso aos nossos autores.
Mas antes de acabar sinto a obrigação de vos contar algo que aconteceu no mês de Abril em 1616. Estávamos cá todos no limbo, aparentemente ninguém nos lia nessa altura, quando fomos levados por algo ou alguém para uma sala branca enorme juntamente com outras personagens, algumas bastante importantes: o rei Lear, o rei Henrique VI, o rei Ricardo III, o rei Oberon e sua esposa, a rainha Titania. Júlio César. Hamlet. Otelo. E todas as outras personagens de Shakespeare. Aí ouvimos então uma voz, como que a voz de Deus que nos dizia: «Eu parto, mas não morro, vocês são a minha essência, criei-os com a minha imaginação. Amigos, inimigos, amantes, traidores, cada um tem a sua natureza mas todos são a minha essência. Eu não morro enquanto vocês existirem.»
Compreendemos aí que o génio que nos criara tinha morrido, não o meu pai, mas o meu Pai, o meu Verdadeiro Pai. Não fizemos um minuto de silêncio, mas antes um minuto de verdadeira alegria, não porque estivessemos contentes, mas porque achávamos que era a melhor homenagem que lhe podíamos dar, não o silêncio, mas um …morreste, mas para morrer é necessário nascer e ao nascer trazias já o génio para nos criares. Obrigado.
Ficámos orfãos, mas felizes por fazer a vontade a nosso pai para sempre. Eu não sou escritor, sou uma personagem, mas convivendo aqui com tantas outras personagens, sinto-me como se lesse um enorme livro que começou quando o primeiro homem escreveu algo e terminará quando o Homem morrer.
FIM

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