Tuesday, June 14, 2005

Breve Narrativa com Palma ao Fundo


Mais uma vez a noite acabou em discussão. A esposa foi para o quarto. Ele ficou na sala, a olhar para o aparelho de televisão sem prestar atenção a nada. Ficou por ali cerca de uma hora. Quando chegou ao quarto ela dormia. Ou fingia.
Deitou-se a seu lado. A distância que os separava parecia um fosso. Tentou dormir, fechou os olhos. O pensamento fugiu-lhe, ou melhor passeou pelos labirintos da memória. Lembrou-se de ver um concerto acústico, numa loja em Lisboa.
Há quantos anos.
Lembrou-se de estar com um amigo. Chegaram horas antes. Foram fazendo tempo.
A salinha foi-se compondo. Nenhum deles namorava. O amigo lançava piropos baixos, que só ele ouvia, a cada rapariga jeitosa que passava. Ele observava.
A alguns metros deles duas amigas sentaram-se. Olhou para as duas, mas o olhar fixou-se numa. Ela olhou para ele, notou que a observava. Desviou o olhar, ele envergonhado também. O artista demorava a chegar. Olhava para ela sub-repticiamente. Notou que ela também o fazia.O concerto começou. Uma das músicas diz:
Porque terras de sonho andaste,
Que Mundo te recebeu,
Que monstro te meteu medo
Que anjo te protegeu,
Quem foi o menino que o teu coração prendeu ?
Ele olha para ela, olha para o seu sorriso. Sente-se a planar. Nem sequer sabe o nome dela. O amigo olha para ele, sorri e diz: Aquela é gira.E ele pensa: Cala-te. Não estragues o momento. A música acaba. Olha para o músico, e bate palmas.Uma nova música começa a ser tocada.
Os teus olhos são cor de pólvora e o teu cabelo é o rastilho
O teu modo de andar é uma forma eficaz de atrair sarilho
A tua silhueta é um mistério da criação
E sobretudo tens cara de anjo mauCara de anjo mau, tu deitas tudo a perder
Basta um olhar teu e o chão começa a ceder
Cara de anjo mau, contigo é fácil cair
Quem te ensinou a ser sempre a última a rir?
Os seus olhos encontram-se, ela sorri timidamente. Ele sente, mesmo, o seu chão tremer. A troca de olhares demora uma eternidade. Já não se lembra quem o afastou, mas isso também não interessa. Olhar para ela lembra-lhe uma outra música: E o paraíso no teu olhar.
O concerto acaba. Ele ainda fica por ali uns momentos. O músico está a dar autógrafos. Nota que ela também ficou. Passa algumas vezes por ele. Lentamente, como que a dar oportunidade para que ele lhe diga alguma coisa. Ele não tem coragem. De dizer olá, um simples oi.
Não sabe porque é que se foi lembrar daquele concerto agora, neste momento. Lembra-se da frustração na ida para casa. Lembra-se de uma música lhe lembrar o fracasso.
Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem
Não se lembra da cara da rapariga, nem de qualquer traço distintivo. Da cor do cabelo ou dos olhos. Nunca soube o nome dela.
Há felicidade a pequenos passos de ti, o medo de falhar, de tentar pode levá-la embora. Olha para a mulher, chama-a. Ela acorda facilmente, se é que alguma vez estivera a dormir. Tem os olhos vermelhos. Ele pede-lhe desculpa e abraça-a.Uma outra música lhe vem à mente, mas facilmente ele afasta-a.
E quando te voltar a apetecer seguir em frente,
Se me quiseres acompanhar,
Canta uma canção de amor,
Pinta os olhos cor de mar...
Põe no teu peito uma flor,
Traz um amigo qualquer
E vamos juntos abraçar o sol nascente
Agora a música é deles. A letra são eles que a vão escrever juntos…

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