Tuesday, July 20, 2010

João Carlos Silva é o autor da moda.
Escusa o leitor de ir procurar na internet, este texto é ficção e corre o risco de encontrar um João Carlos Silva que aparente ser o personagem e isto causará decerto problemas de interpretação. - O Narrador.
Escreveu, aos trinta e cinco anos, cinco livros. Dois ganharam prémios, quatro são bestsellers, um é incompreendido pelos fãs, ainda que objecto de culto por parte daqueles que não gostam de João Carlos Silva.
João não gosta de multidões, é tímido e prefere não discutir com estranhos aquilo que escreve, por isso encontra-se, agora, num inferno muito próprio, uma Feira do Livro.
É tão branco que poderia ser herói de uma dessas ficções actuais sobre vampiros. Claro que a pigmentação que possui é fruto da estadia longa e frutuosa em locais fechados, nomeadamente o seu quarto e umas quantas bibliotecas. Poderia encontrar o seu nome no baixo-assinado contra a Biblioteca Nacional, se fosse de carne e osso. - O Narrador
Está sentado ao lado de uma das barracas da editora, com o seu editor ao lado. Está quente, 35 graus, sem uma brisa que o alivie.
Só para explicar que as minhas frases encontram-se a negrito não para me evidenciar, podia ser, talvez seja essa a razão a um nível inconsciente, mas para vos dar a oportunidade de as evitar, lendo o texto sem os meus apartes. Escuso de assinar novamente, se leram as dua notas anteriores sabem que sou O Narrador.
Bebe um golo de água, já morna, e levanta a cabeça. Uma mulher, morena, tanto a nível capilar como epidermicamente, lindíssima, sorri-lhe e estende-lhe os cinco livros. João olha para ela, menos demoradamente do que quereria. 
-Qual o seu nome?
-Valquíria.
João pára um pouco. Sorri-lhe e responde.
-Morri e vou para Vallalla?
A moça olha para ele com um ar incompreensível. João pensa se vale a pena explicar a piada e desiste.
-Não os dedique a mim, são do meu irmão e do meu pai. Eu só vim para o ver ao vivo.
Explica-lhe quais os nomes a colocar em cada um dos livros, João termina as dedicatórias e sem pensar, e aproveitando a situação, dá-lhe um cartão.
-Envie-me um mail, podemos falar sobre as Valquírias.
Ela ri, um riso que a João parece irritante e oco, mas leva o cartão.
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Poderia demorar um pouco explicando a presença de Valquíria nos pensamentos de João, no resto daquele dia; poderia, também, evidenciar mais alguns aspectos da personalidade de João, vincados nas suas acções ou inacções durante a sessão de autógrafos - a forma como se engasgava quando alguém lhe perguntava sobre um dos seus personagens ou quando alguém (na verdade um indivíduo de fato, gordíssimo e a suar por tudo quanto eram poros) tentava retirar algum ensinamento esotérico que simplesmente não está no livro). Poderia, posso mesmo, mas prefiro ir atrás de Valquíria, que por sinal pára em mais duas bancas, as duas de carácter esotérico/duvidoso, onde compra três livros, que me abstenho de nomear.

Valquíria chega a casa com um sorriso nos lábios. Entrega os livros ao pai e ao irmão, dirigindo-se ao quarto. Retira o cartão de João de um dos sacos. Senta-se ao computador e escreve um mail, onde demonstra toda a sua admiração, não para com o escritor, mas para o homem que este é.

Claramente, Valquíria é daquelas mulheres bonitas com queda para homens apagados, talvez porque sobressaia ainda mais ao lado destes, talvez porque sofra de miopia ou dioptria (nunca sei qual), se não das duas.

Está para ir buscar um dos livros que comprou quando nota que recebeu um mail. Abre-o.
"Desculpa, mas axo que t enganaste no mail, eu n escrevo, profissionalmente, p menos. Mas és gira, gostei bué da tua foto. Isto não é uma brincadeira, pois não? Envio-te uma foto minha também. Se quiseres podemos ir beber um copo."
Valquíria abre o ficheiro e pasma perante um tipo mais moreno que ela, com ar de surfista.
Pode sofrer de miopia, mas não é parva. Sair com um surfista também é de valor. Quedo-me por aqui. Para quê avançar mais na narrativa, se ela já saiu dos eixos que João terá imaginado naquela tarde? Valquíria encontrou-se com o surfista. João esperou pelo mail. Desesperou até que descobriu que os cartões que tinha feito tinham um erro. Faltava um ponto a dividir o Carlos do Silva. Depois voltou a fechar-se em casa e escreveu um livro, uma história de amor sofrida, mas que acaba em casamento. A ficção serve também para isso, criar ilusões.

Wednesday, May 19, 2010

Silva e Pombo - 14 de Maio

14 de Maio – 6ª Feira

14horas

O dia está quente, não tão quente como fará, esperam, daqui a dois meses, mas o suficiente para os fazer esquecer da chuva e do frio. O inverno foi rigoroso mas, apesar do calendário dizer que já estão na Primavera, o clima parece até aqui desdizer o calendário.
Aproveitando o sol,e o facto das aulas terem terminado à uma e meia, Daniel convida-a a darem uma volta à praia. Escolhem a Lagoa ou o Meco como destino. A meio caminho, ela diz-lhe para pararem, ele dirige a mota para as árvores onde costumava “piknicar” com os pais quando era pequeno.
Ela sai da mota e encosta-se a uma árvore com um ar lânguido.



14 de Maio –6ª Feira

23h30

Pombo coça a cabeça, cansado e tentando antecipar o fim do turno, a mais de oito horas de distância.
Encontra-se perto da paragem da Arrentela, na marginal, antes do Eco-Museu. Paragem auto-stop, numa noite de sexta-feira, trabalho não há-de faltar. Ao seu lado, Silva acende um cigarro. Do outro lado da estrada, mais três colegas.
- Que noite. Já viste? Devem estar, o quê, uns 24 graus?
Pombo acena, a cabeça pesa-lhe. Já tomou três comprimidos para a dor de cabeça, mas esta subsiste, sabe que o mal está nas noites mal dormidas das últimas duas semanas. Há ainda pouco trânsito, por isso, antes de começarem a operação, Silva quer fumar um cigarro.
Quando este termina de fumar, começam a mandar parar carros. Não gosta desta tarefa, Silva muito menos. Eles os dois estão ali somente para prevenção, conferir limites de velocidade, taxas de alcoolemia e se os seguros estão em ordem ou não. Ao menos a noite está agradável. E o trabalho será menos pesado do que o dos colegas do outro lado da estrada, já que esses mandam parar os que voltam do Seixal.
Pombo cresceu em Paio Pires, Silva conhece meio mundo, há medida que vão pedindo aos condutores para parar, vão reconhecendo caras e encontrando amigos. Tanto um como o outro, cumprem o que lhes é pedido, mas acrescentam um ou outro pedido de desculpas, pelo tempo perdido, pelo transtorno.
Um dos que manda parar andou com ele à escola, comenta a noite que está e acrescenta que ouviu na rádio que Portugal tende a ter um clima tropical. Brasileiros já temos, diz, com um sorriso, ao menos que tragam o clima com eles.
Silva olha para o relógio.
-Pombo, fazemos uma pausa? Há uma hora que não fumo um cigarrito.
Fazem a pausa, Silva pergunta-lhe como vai a dor de cabeça, Pombo esqueceu-a, com o trabalho.
-Está melhor, já passou.
Mais umas semanas e começam as festas, no Seixal, na Torre e depois em Paio Pires. Pombo tem pena que não lhe dêem férias nessa altura. A confusão é muita e as noites ocupadas a passear pelas Feiras, nomeadamente pelas do Seixal e Torre da Marinha. Aquelas duas semanas, felizmente com uma de intervalo, cansam-no e desgastam-no. O som dos altifalantes, a música, os pequenos furtos, as bebedeiras, as ocasionais lutas, combinadas ou não, principalmente na Torre da Marinha.
-Silva, vá, estás despachado, ou quê?
Silva apaga a beata, aproxima-se da via e manda parar o carro, vira-se para Pombo e quase em sussurro realça a grandeza de Deus. Pombo estranha.
Mal o carro encostou à esquerda, Silva reconheceu a cara do GNR que o multara quase um mês antes. Tentou não sorrir, mas não conseguiu.
-Boa noite, senhor condutor. Os seus documentos e os da viatura, por favor.
O condutor parece atrapalhado, reconheceu-me, pensa Silva. Confere os documentos, tudo em ordem, mas um brilho no olhar do outro leva-o a pedir que saia da viatura e sopre para o balão. O agente da GNR hesita, olha para Silva e começa a balbuciar alguma coisa, Silva interrompe-o.
-Algum problema, senhor condutor?
-Sabe, Agente Silva, sou capaz de ter bebido alguma coisita a mais.
Silva mede o tom e o cinismo, acrescenta um sorriso e responde-lhe.
-“ Os agentes da autoridade têm de dar o exemplo, não é?”
O GNR, com ar irritado, sai do carro. Silva passa-lhe o balão.
- Sabe como funciona, certo? Ou quer que explique? É só inspirar e soprar até que lhe diga para parar.
Pombo observa a cena à distância, sem se aperceber da identidade do condutor. Estranha a postura do corpo de Silva, parece divertido, há algo aqui que não bate certo, pensa. Manda parar outro carro.
Silva termina o auto e pede ao GNR que lhe pague os 120 euros da multa, em dinheiro ou cartão. A fúria nos olhos do condutor é visível. Pombo estranha a demora do colega, está com aquele condutor há quase 25 minutos. Finalmente, ouve Silva desejar uma boa noite ao condutor. Desconfia que o tenha multado por excesso de álcool, estranha ainda mais que o tenha deixado ir. Silva pega no telemóvel, fala durante uns segundos e Pombo percebe que está a transmitir os dados do veículo. Vê-lhe um enorme sorriso.
- Para quem não gosta de passar multas, estás muito satisfeito.
- Era o Gê Nê RÊ que me multou em Paio Pires . Vomitou 120 euros e com sorte ainda vomita mais outros 120. Telefonei ao Chaves, estão ali no Alto das Cavaquinhas, tinham-me mandado uma mensagem para o telemóvel, houve um acidente, dei-lhe os dados do veículo, se passar por ali, é multado outra vez. Por isso é que o deixei ir. Não estava assim tão enfrascado, mas o suficiente para o balão se queixar.
- Tu às vezes… Mas mandaram-te mensagem porquê?
- Foi há coisa de 10 minutos, para irmos dar lá uma mãozita. Mas já não é preciso, já está no rescaldo.
Pombo sorri, a vingança fria é um prato delicioso.

14 de Maio

23h45

Os pais estranharam que Daniel não tenha saído, ainda para mais, numa sexta-feira à noite.
Daniel está sentado na cama, em frente à televisão, onde ganha 3-0 ao Real de Madrid com o seu SCP. Joga PES.
Ouve o telemóvel apitar com o tom de chegada de mensagem. 80 minutos de jogo. Já te dou a atenção devida. Nos dez minutos, menos do que dois minutos reais, que faltam o telemóvel apita mais duas vezes.
Tira o som da televisão e começa a ler as mensagens.
MSG1: De certeza k não queres vir beber1copo?Tamos no Seixal. Carlos
MSG2: Sabes da Filipa? Tem o tlm desligado. Susana
MSG3: A TMN oferece-lhe msgs grátis…
Apaga a última mensagem antes de a acabar de ler.
"Porra! Porra! Porra! E agora?"
Manda mensagem à Susana a dizer que não sabe nada da Filipa. Telefona para o Carlos. De início percebe que o amigo não o consegue ouvir. A chamada demora mais de 20 minutos, quando desliga a chamada, fica a pensar nas palavras do amigo. "Não te preocupes. Deve estar lixada contigo, só isso!"
Apaga a luz, mas passa a noite acordado, sem conseguir adormecer.A escuridão não o acalma, nem o adormce, bem pelo contrário, tolda-lhe os sentimentos e não pára de pensar para si mesmo, “ O que é que eu fiz? Filipa, onde é que estás?”
Liga-lhe várias vezes, mas o telemóvel continua desligado.

Monday, May 03, 2010

Pombo e Silva (4)

Cansado, abre a porta de casa. Entra, fecha-a ao trinco, hábito ganho em casa dos pais. Vai até à cozinha, abre uma garrafa de água com gás e bebe-a em três tragos, sentado no sofá, fazendo zapping com o comando na mão. Levanta-se, colocando a garrafa no chão, vai até à casa de banho e põe água a correr. Volta à sala, senta-se novamente no sofá. Está cansado, sente o corpo tenso, espera que a água quente o alivie da sensação.
Desliga a televisão, coloca um cd na aparelhagem. Ao seu lado não mora ninguém, mas já são onze da noite, por cima e por baixo continua a ter vizinhos, mas nunca gostou de ouvir música muito alto.
Ao primeiro riff de bateria, sente alívio, imagina o que Silva diria da barulheira que está a ouvir, a voz de Bruce Dickinson eleva-se, as guitarras juntam-se e o bater dos sticks é cada vez mais rápido. Há coisas que não mudam com a idade. Pombo ouve todo e qualquer tipo de música, mas volta recorrentemente ao metal. Coisa estranha para Silva, que o obriga a ouvir outro tipo de música quando está com ele.
Apaga a aparelhagem quando começa The Trooper. No escritório, vai à prateleira dos livros não lidos e pega num romance policial nórdico já iniciado. Pensa no paradoxo da situação. Na Suécia há uma média de trinta mortes por homicídio anualmente, o livro que tem na mão, The Man from Beijing, deve ultrapassar essa média nas primeiras 30 páginas. Desconhece, anda para investigar há dias, quantas mortes haverá por ano em Portugal, mas faltam-nos romances policiais para equilibrar a realidade.
A banheira ainda tem pouca água, mas ele coloca-se lá dentro, a condensação tapa o espelho da casa de banho, ele aguenta, abre o livro e remeça a leitura onde o deixou. Trinta minutos depois, passa o corpo, primeiro, por sabão, depois por água fria.
Já com pijama vestido, prenda da mãe, coloca um pouco de Dimple num copo. Está na varanda, sentado numa cadeira de plástico, onde gosta de ver as luzes de Lisboa e Barreiro, ao longe. A noite está fria, mas o álcool aquece-o, gosta de terminar a noite bebendo um copo de whisky ou aguardente, vício começado com o trabalho por turnos, depois de um dia de trabalho não há nada que lhe agrade mais do que descansar o corpo e a mente com um copo na mão, normalmente o único álcool que ingere em todo o dia.
São poucas as vezes que o podemos ver como está, sentado na varanda, de copo na mão, sem phones nos ouvidos ou um livro na mão. Pombo perde-se dentro de si, imerso nos seus pensamentos ou não pensando em nada, acordado aqui a ali do torpor por um cão, pássaro ou pelo ruído do motor de um dos carros que passa na estrada em frente. Pensa no que Silva lhe disse, na mulher que o atendeu à hora de almoço, da ausência de luto, mas na permanência de uma certa tristeza que agora parece vislumbrar. Nunca tal hipótese se lhe pusera, dominou a língua, mais rápida que a mente, para evitar fazer algum comentário despropositado. Chegou ao café em hora morta, ao contrário do que àquela hora é costume o estabelecimento estava quase deserto, ele fez o pedido e alguns momentos depois estava a provar a pizza. Maria José sentou-se, depois de lhe pedir licença, ao seu lado e falaram pela primeira vez a sós, de assuntos não relacionados com a profissão de polícia. Conversaram durante praticamente todo o tempo que Pombo almoçou, depois começaram a chegar clientes para os cafés pós-almoço.
Pombo tenta relembrar-se do que disseram, não se lembra de nada minimamente interessante, começa a sentir frio, olha para o copo, bebe o que resta de um trago e entra em casa.
Pega novamente no livro, deita-se de barriga para baixo e recomeça a leitura. Ao fim de vinte páginas, está com a cabeça em cima de uma das páginas, de boca aberta, empapando a página par. Está cheio de frio, tremelica, quando acorda, a luz continua acesa, o relógio marca quatro e dez e sente a suave recordação de um sonho, tenta sem sucesso lembrar-se do que sonhou, só se lembra de Maria José, sorrindo para ele, vestida de preto. Coloca o livro no chão, numa pilha de outros, ao lado da cama, levanta-se e apaga a luz. Ali, só, de olhos abertos para a escuridão da noite, pensa na mulher que o serviu no dia anterior. Tenta evitar pensamentos mais eróticos, mas quanto mais tenta evitá-los…
Adormece finalmente, amaldiçoando Silva enquanto cupido alentejano. A madrugada voltará a trazer-lhe Maria José em sonhos.

Wednesday, April 28, 2010

Pombo & Silva (3)

Silva nasceu no Alentejo, mas quis a (má) sorte que os pais viessem para o Laranjeiro, quando ele tinha dez anos. Se os primeiros anos foram anos de habituação, descobertas, os anos posteriores têm sido anos de fugas curtas, mas seguras, à terra que o viu nascer.
Silva reconhece que só a ausência de um trabalho fixo na terra dos pais o mantém no Seixal. Anseia todo o ano pelo mês de férias para se fechar do mundo, no monte por trás do fim do mundo. A mulher acompanha-o num misto de obrigação e gosto, a filha, essa, já não os acompanha, pelo menos, durante todo o tempo que ali passam.
Silva descobre-se a si mesmo e aos outros. Ali, numa aldeia pequena, com 4 ruas grandes, 9 tabernas, algumas baptizadas hoje como cafés. Adora acordar e ouvir os pássaros e os cães, sentir o cheiro a bosta de algumas das vacas ainda mantidas ali, que prefere ao cheiro do tubo de escape, de gasóleo ou gasolina. Passa pela rua que o leva ao centro da aldeia, vê os vizinhos tratar da bicharada, porcos, galinhas, cães, gatos, patos, cabras. Tenta tornar-se um autóctone, ajudando os familiares mais próximos a tratar da horta, couves, alfaces, tomates, limoeiros, macieiras, laranjeiras. Ir à cata de cogumelos, espargos, beldroegas. Isto é que é vida, pronuncia várias vezes, acordar às seis da manhã e ir apanhar pássaros, sem que a GNR os apanhe, fora da época. Deitar-se às seis depois de uma noite aos javalis. Silva só está no Seixal porque precisa, porque já não é possível viver só da terra. Até do bafo quente logo de manhã, antecedido por uma brisa quase gélida, gosta.
Está casado há 27 anos, tem duas filhas, uma com vinte cinco anos, a outra com quinze. A de vinte e cinco está casada, tem a sua vida e pouco a vê. Ainda não tem netos. A outra pequena vive com os pais, estuda no Cavadas e, tanto quanto ele sabe, porta-se bem. Não lhe dá muito que fazer. Gosta de sair à noite, ele deixa. De semana obriga-a a estar em casa às dez e meia, ao fim de semana à meia-noite. Conhece as amigas, os pais delas, está a modos que descansado.

Quem o conhece sabe como Silva é. Simples, de poucas palavras. Gosta do seu copito. É sincero, quer gostem de ouvir o que ele tem para dizer, quer não. Não é má pessoa, mas quando embirra com uma pessoa é, quase sempre, para a vida toda.

Naquele dia foi Silva que foi buscar Pombo. Saiu de casa, em Paio Pires, e pôs, como sempre, o carro a trabalhar, enquanto procurava uma estação de rádio que o interessasse. Puxou o cinto para o colocar, ao mesmo tempo que destrava o carro e se preparava para fazer marcha atrás.
Antes de ouvir o click do cinto, sentiu que alguém lhe batia no vidro, um agente da GNR.
“Bom dia. O senhor não sabe que deve colocar o cinto antes de colocar o carro em movimento?”
Silva não gostou da subida de entoação no antes. “Bom dia, colega. Sei…”
O outro interrompeu-o. “Colega?”
“Sou agente da PSP, no Seixal. Tem razão, amigo, mas sabe como é…”
O agente da GNR interrompeu-o outra vez. “Não sei se sei. Os documentos do carro e a carta, se faz favor.”
Silva respirou, inspirou, expirou, inspirou e expirou. Parou o carro. Saiu e estendeu ao GNR o que ele tinha pedido.
O outro inspeccionava os documentos com um sorriso estúpido, ainda por cima tinha cara de parvo. “Está tudo em ordem, mas vou ter de autuá-lo, senhor” sorriu “agente Silva. Os agentes da autoridade têm de dar o exemplo, não é?”
Silva estava vermelho. Interiormente já lhe tinha chamado inúmeros nomes, bem como aos ascendentes do GNR. Sorriu, o menos amarelamente possível. “Se o diz…quem sou eu para o desdizer.” Devem andar com falta de dinheiro, camelos dum raio, pensou surdamente.

Há poucas coisas que unam mais Silva e Pombo do que o ódio quase visceral que têm pelos GNR de Paio Pires, não tanto pela força militar em si, mas pela qualidade moral e pessoal dos agentes que conheceram ao longo dos anos. A verdade é que pelo posto da GNR passaram inúmeros oficiais, uns melhores do que outros. Actualmente, o corpo foi rejuvenescido, dizem as más línguas, com queda para as operações de trânsito.

Já na esquadra, Pombo tenta acalmar o colega. Silva está furibundo com os 60 Euros de multa, em voz mais baixa vai lançando todo o tipo de epítetos. Pombo percebe o estado de espírito do colega e pouco mais faz do que aceder com a cabeça.
“Mais Papa que o Papa, aquele filho da…”
Pombo não arrisca sorrir, sabe como o colega reage nestas situações. Tenta colocar água na fervura.
“Acalma-te, Silva, não vale a pena enervares-te tanto. Ficas a saber como é que os outros se sentem quando os multamos.”
Silva dá um murro na mesa. “Porra para ti, Pedro. Nunca me viste, nem há-des ver…”
"Hás-de” corrige Pombo.
“Deixa-te de porras, senhor professor.” Atira violentamente Silva, levando com que Pombo se decida calar. Já há algum tempo que não via o colega tão alterado. “Nunca me viste multar alguém gratuitamente. Sabes bem o que penso disso. Nem que nos atribuam quotas.”
Pedro Pombo sabe que é assim. Silva enerva-se quando ouve contar histórias aos colegas que multaram este ou aquele porque sim, porque não foram com a cara da pessoa, porque acharam que deviam, porque lhes apeteceu. Silva não gosta de uma colega, a Justiceira, por causa disso mesmo. Tem a mania que é gente porque é agente da PSP, mas ele sabe, e diz-lhe, que é mania, falta de competência, estupidez, falta de homem, ou de mulher, já lho disse na cara. Não falam desde essa altura.
Pombo convida Silva para almoçar. “Como estás 60 Euros mais pobre, pago-te eu o almoço, que dizes?”
O outro acalma-se inconscientemente e sorri, um sorriso atabalhoado, toldado ainda pela fúria.
“Obrigado, rapaz. Mas hoje a mulher não foi trabalhar, almoço com ela. Queres ir lá almoçar, já que estás tão simpático?”
Pedro recusa, amavelmente, já tinha feito planos, já sonhara com as pizzas recém descobertas. “Deixa-me na Dona Maria José, vou comer uma das pizzas caseiras dela.”
O outro olha para ele, momentaneamente perdido.
“Deixo-te onde? Ah, na Zé. Pareces o meu avô. Dona Maria José para aqui, para ali. Chama-a de Zé, pá.”
Pombo sorri, ligeiramente encavacado, mais por culpa do amigo, do que por culpa do termo ainda usado.
“Larga-me da mão. Chamo-a como eu quiser e como achar que devo chamar.”
“A mulher é bonita, não é?” Pergunta-lhe Silva, com sorriso maroto. Pombo anui, mas Silva continua. “Pena que tenha ficado viúva tão cedo, pena ou oportunidade…”
O colega não o deixa terminar, ignorando a deixa. “Viúva? Não sabia, não me tinhas dito nada. Mas ela tem anel no dedo.”
“Ah!...Já lhe olhaste para o dedo!” Pedro fica ligeiramente corado, mas Silva tem pena dele, pelo menos é o que pensa, e continua. “Não sei se por homenagem ao morto ou para evitar que tentem qualquer coisa. O homem dela morreu há 4 anos, numa noite, à pesca. Estava num barco com amigos, caiu uma borrasca, o mar encrespou-se e uma vaga levou-o. Nunca o encontraram. Uma história triste, pelo menos para os que ficam. Ao menos não tinham filhos. Mas não puxes pelo assunto. Ela não gosta, como é óbvio, de falar disso. Nunca gostou. Evita puxar o assunto ou mesmo dar indicações de que sabes alguma coisa.”

Acabaram o que estavam a fazer e partiram, rumo à refeição.

Monday, April 19, 2010

Pombo e Silva (2)

O caso do Rissol de Camarão como o apelidou Silva, com um ar saudosista, foi o momento alto da semana. O resto foi constituído pelo dia-a-dia costumeiro, rondas, pequenas ajudas, operações stop e a obrigação favorita de Pombo, a Escola Segura.
Pombo gostava de estar em frente da José Afonso, onde estudara anos antes. A escola mudara desde que ele de lá saíra, novos pavilhões, caras novas, tanto de docentes e discentes, como seria de esperar, mas também de auxiliares, o que não era menos expectável.
Pombo tinha boas memórias daquele local, à data considerada a pior escola do concelho. Ele gostou da passagem por lá, pelas Cavaquinhas, como era conhecida no concelho. Nos dois primeiros anos, a fama era merecida, a maior parte dos alunos do sexo masculino era assaltada todos os dias, a percentagem sobrante era constituída pelos meliantes. Apesar das mudanças, Pombo sentia-se em casa, talvez pelas conversas que tinha com duas ou três antigas professoras, que por ali ainda se mantinham.
Silva gostava menos daquilo, mas não se queixava muito, Pombo era competente e permitia- -lhe fumar e ir ao café de vez em quando. Para além da prevenção a que a presença da polícia levava, já que era dissuasora de diferentes hábitos e práticas, Pombo foi-se tornando conhecido, o que possibilitou vários contactos com os alunos, uns mais preventivos, outros mais pessoais. Ele lembrava-se da opinião que tinha enquanto adolescente da GNR de Paio Pires, preferia ser visto como um tipo porreiro e dar-se ao respeito do que como um agente que passava o dia no café e fingia trabalhar para fugir a algumas obrigações. Deixava isso, pensava cinicamente, mas com ternura, para Silva.
No dia em que prenderam os três falsos ciganos, era só parecença, foram até ao Café do Bairro, para falarem com a Dona Maria José, ainda não a conseguia tratar por Zé, e lhe explicar como levantar o dinheiro roubado, entretanto descoberto no porta-bagagens do Seat roubado.
Era a segunda vez que Pombo ali entrava e desta vez aproveitou para observar, não profissionalmente, mas enquanto cliente, o espaço. Em frente da porta o balcão, paredes roxas, com flores pintadas a preto, dez mesas com quatro cadeiras cada uma. Não era, nem gostaria de ser, decorador de interiores, mas aquela não era de todo a sua ideia de decoração, no entanto, a simpatia da dona e a qualidade dos bolos, segundo Silva, poderiam levá-lo ali algumas vezes. Não morava assim tão longe e o seu bairro não tinha nenhum café digno desse nome.
A Dona Maria José estava de calças de gang e t-shirt amarela, cor que caía bem na pele bronzeada. Pombo desconfiava que ela sabia disso. Sorria muito, um sorriso bonito que realçava a forma dos olhos, amendoada.
Silva tomou, mais uma vez, a dianteira. Deu os bons dias, pediu-lhe umas Pedras e disse-lhe que quando tivesse tempo eles gostariam de explicar-lhe o que acontecera e como podia reaver o que lhe fora roubado. Pombo pediu um café e uma Castelo, gostava de beber água com gás e não conseguia tirar o mesmo prazer de uma das Pedras, que achava ter muito pouco gás.
Silva bebeu a garrafa de um trago, e enquanto esperava que Zé atendesse os clientes, pediu um bolo e uma torrada.
“Já almoçaste, não? Ainda consegues comer isso tudo?” Perguntou-lhe Pombo, mais para o arreliar do que admirado com a capacidade devoradora do colega, já se habituara a isso. O outro não respondeu. A mulher despachou o novo pedido e sentou-se com eles, quando o trouxe.
Falaram durante algum tempo, explicando o sucedido e a forma como os tinham apanhado. “Se este tipo não gostasse de revistas para miúdos, se calhar estávamos na mesma cepa torta.” Disse Silva, com manteiga a descer pelo queixo.
Terminaram a conversa, Maria José não os deixou pagar nada do que tinham consumido e, com um agradecimento sincero, meteram-se no carro.
O resto da semana foi, então, banal, se exceptuarmos os pedidos de Silva, algumas vezes anuídos, a Pombo para passarem pelo café no Casal do Marco para comer(em) rissóis de camarão.

Monday, April 12, 2010

Pombo & Silva (1)

São onze da noite, o dia passou-se placidamente, sem problemas de maior. Foram chamados há cerca de dez minutos. Silva reconheceu o nome do café ou o nome da rua, das duas três, pensa Pombo.
Pára o carro em frente do café. “É este. Vamos lá.” Diz-lhe Silva.
Saem do carro. Silva tem 45 anos, pouco cabelo, gordo e bonacheirão. Pombo tem 30 anos, magro, de cabelo à espera de ser cortado, vai à frente.
Mas é Silva que toma a iniciativa.

“Zé, que se passou?” Pergunta, rapidamente, enquanto observa o interior do café.
“Zé?” Pensa Pombo, este tipo conhece mesmo todos os cafés do Seixal e arredores. Estão em Paio Pires, num dos Bairros novos, que eram quintas quando Pombo ali cresceu. Eu que sou de Paio Pires conheço menos gente que o Silva. Começa a perder-se em pensamentos, se Silva conhece muita gente ou simplesmente muitos cafés e as pessoas que os frequentam. A linha de raciocínio é rapidamente interrompida pela resposta rápida da dona do café.
“Foram dois ciganos, Silva. Chegaram, sentaram-se, pediram duas bicas e foram ficando. A casa estava cheia, em noite de bola é sempre mais ou menos assim, como sabes, ainda para mais quando é o Benfica. Assim que esvaziou, levantaram-se, apontaram-me uma arma e levaram o dinheiro.”
Silva acena que compreendeu o que ouviu e, antes de continuar, apresenta o colega à dona do café. Pombo aperta-lhe a mão, fica a saber que se chama Maria José, mas toda a gente a trata por Zé. Deve ter cerca de 30 anos, um pouco mais talvez, tem cabelo castanho, nariz aquilino, pela tostada pelo sol, é bonita.
Silva continua. “Já os tinhas visto aqui? Não. Como é que eram?”
“Eram ciganos, sei lá como eram! Magros, vestidos de preto, um de bigode, o outro de barba de três ou quatro dias. O de bigode devia ter uns quarenta anos, seco, o outro mais novo, de olhos verdes, lindíssimos.”
Pombo olha para ela, nota que tem os olhos avermelhados. Pensa que deve ter chorado, depois de assaltada, mas agora está ali, direita, voz firme, sem dar parte de fraca.
“Zé! Já tens idade para ter juízo, mulher.” Brinca Silva. Ela sorri, sem jeito, sem saber muito bem que atitude tomar.
Pombo percebe que ela deixou de estar à vontade, tenta ajudá-la e faz-lhe a pergunta seguinte. “Como é que fugiram?” Sente que o colega vira momentaneamente a cabeça na sua direcção. Sabe que Silva não gosta que o interrompam.
“Tava outro dentro de um carro, ali mais abaixo. Era claro, branco ou creme.”
“O carro?” Pergunta estupidamente, corando ligeiramente.
É Silva que responde. “Quem é que havia de ser? O Cigano?”
“Ainda há carros creme?” Quando acaba de pronunciar a frase, sente o corpo do colega retesar-se.
“Tá calado, Pombo! Zé, consegues descrever-me o carro? De que marca?”
Ela olha para Silva, sorri, agora à vontade. “Desde que tenham quatro rodas e andem, eu fico satisfeita. Não percebo nada de carros. Um Seat, para mim, é igual a um Ferrari. Mas uma das vizinhas diz que viu a matrícula.”
Pombo pensa que há coisas que não mudam em Paio Pires, desde miúdo que se lembra de vizinhas que pareciam ter como única ocupação estar à janela. Devia estar no intervalo da telenovela, pensa em voz alta. Silva ignora-o, Zé sorri.
Silva começa a perguntar pela vizinha, mas Zé guardou a matrícula numa folha de papel.
“Ela diz que foi tudo rápido, mas que tem quase a certeza da matrícula.. Deixem ver… 10 –AD…”
Pombo interrompe-a. “Porra! 20?”
Silva olha para ele, com ar espantado. Zé junta-se ao colega.“Sim, como é que adivinhou?” Silva continua a olhar para ele, mas o olhar de espanto transforma-se lentamente em compreensão. “O carro roubado ontem à noite?”
"O carro roubado ontem à noite” repetiu Pombo.
Fazem mais algumas perguntas e despedem-se de Zé, prometendo voltar no dia seguinte, para mais algumas averiguações ou para dar algumas informações.

Silva abre a janela e puxa dum cigarro. “Há aqui qualquer coisa que não bate certo”, diz Pombo. “O relatório do João não identifica os ladrões do carro como ciganos. E houve três ou quatro testemunhas.” O colega acaba de dar mais um bafo no cigarro. “De noite, todos os gatos são pardos.” Diz.
Pombo acena, mas continua. “Talvez, mas as descrições batem certo com a descrição da Zé.”
Silva olha para ele. “De olhos verdes?”
“De noite todos os olhos são pardos.” Ri-se Pombo.


Dois dias depois, Pombo apanha Silva em casa, meia hora antes de se apresentarem ao serviço. Silva mora em Paio Pires, Pombo no Cavadas. Silva entra no carro, coça a barriga. “Porque é que vens tão cedo?”
“Desculpa lá, mas hoje é dia de comprar a BD, vamos ao Rio Sul…” Responde Pombo, antecipando mentalmente a resposta. “Mas tu já não tens idade para essas porras. BD, BD. “
“Deixa-me da mão. Pago-te o café.”
O outro olha para ele, inspira fundo e acrescenta. “E o Record também. E se era para me pagares o café, mais o jornal, podias ter vindo um pouco mais cedo. Não gosto de pressas, sabes bem. Ainda para mais logo de manhã.”

Sobem o Alto dos Bonecos, passam pelo Casal do Marco, fazem a rotunda na direcção da estação dos comboios, quando Pombo guina repentinamente para a berma. Surpreso, Silva olha para ele. “Tás parvo ou quê?”
Pombo olha pelo retrovisor, faz marcha atrás, e aponta para o outro lado da estrada. “Silva! 10 –AD -20. Olha o carro ali.” O outro, espantado, olha para um beco junto aos prédios. Ao fundo encontra-se um Seat Marbella, branco. “Estacionado como mandam as regras do código. Transmite isso à esquadra, que venha cá alguém buscar o carro e fazer umas perguntas. Que estás a fazer?” O colega já abriu pisca e estaciona o carro ao lado do talho.
Pombo desliga o carro. “Já cá estamos nós. Começamos mais cedo. Das duas três. Ou foram-se embora, ou moram aqui perto. Pago-te já o café, de certeza que devem ter o desportivo. Bebemos uma bica primeiro, falamos com o dono do café e depois perguntamos nas outras lojas.”
Silva não se mostra muito convencido “Se não tiverem o Record…” Deixa a ameaça no ar, vencido pelo ar divertido, mas compenetrado do amigo. “De certeza que o carro está abandonado. Ninguém é assim tão estúpido. É certo que o carro está a modos que bem escondido....”
“ O melhor sítio para se esconderem coisas é à frente de toda a gente. Foi pura sorte, quem adivinha que a polícia passa por aqui, olhando para as ruas ao lado dos prédios? De qualquer modo, inteligência, que eu saiba, não é um requisito para se ser assaltante. Há uns mais inteligentes que outros. E o desespero torna o tipo mais parvo num assaltante audaz, estúpido, mas audaz.”
“Vá, anda lá ao café.” Silva entra no café, olhando para a montra. Ainda Pombo está a entrar pela porta e já ele pediu um rissol de camarão, um café e meia torrada.

Pombo pede um café e uma sandes de queijo com manteiga. Diz bom dia ao dono do café e a quem está ali sentado. O café é pequeno, uma velhota está a beber uma bica e a ler o CM, ele olha para uma mesa e vê que o Record está em cima da única cadeira vazia. “Posso tirar?”, pergunta, sorrindo para os homens. “Macacos me mordam.” Pensa. “Não há um pingo de inteligência neste mundo?”
Agradece o café, deixa Silva a comer o rissol e a ler o Record. Vai até à rua. Tira o telemóvel e fala durante três minutos.
Silva olha para ele. “Estás bem disposto, hoje? Que sorriso parvo é esse?” Pombo vai para responder-lhe quando um carro da PSP pára em frente do café.
Dois agentes saem, entram no café e Pombo acena-lhes.“Bom dia. Agentes Pombo e Silva, da Esquadra do Seixal.” Sente que há movimento na mesa do canto. “Bom dia, colegas.” Os outros apresentam-se. Silva olha para os colegas da Esquadra da Esquadra de Investigação Criminal da Torre da Marinha. Acaba de comer a torrada. “Experimentem os rissóis de camarão, são muito bons.” Repara que mais um carro da PSP pára em frente ao café.
Mais três colegas entram no café. Isto parece um comício da PSP, pensa.
Um dos polícias que chegou primeiro, pergunta a Pombo se ele quer ter a amabilidade. Pombo levanta-se, dirige-se à mesa onde estava o Record.
“Bons dias, meus senhores. Sou polícia, estou desfardado, mas tenho aqui os meus colegas- Podemos pedir-lhes a vossa identificação?”
Os três homens olham para ele, para os outros polícias. A contragosto, mostram-lhes os BI´s. Começam a perguntar o que se passa, o que é que fizeram, quando Pombo os interrompe. “Aquele Seat Branco é vosso?”
Um deles, mais gordo, responde que não. “A que propósito vem a ser isto, senhores agentes?” Acrescenta.
Silva olha para os três, foca a visão num deles, repara nos olhos. Verdes, lindíssimos. “Filhos da mãe. Filho da mãe.”, pensa.
A velhota, atenta a todo aquele inquérito, levanta-se e diz em voz alta. “Esse senhor está a mentir, que eu vi-os chegar no carro. Com estes olhos que a terra há-de comer, vi-os chegar no carro.”
Pombo sorri, novamente. Parece que tinha razão. “Obrigado, minha senhora. Meus caros, podemos fazer isto de três maneiras. Vão connosco até à esquadra, para uma pequena investigaçãozita, ficarmos com os vossos nomes, e afins. Ou deixam-me tirar-vos uma fotografia com o telemóvel e esperamos aqui dez minutos.”
“Disse três maneiras, qual é a terceira?” Pergunta o mais magro dos três, de olhos verdes.
“É uma variação das outras duas. Ou vão para a esquadra, tiramos-vos umas fotos e esperam um pouco ou tiro já as fotos e esperam na esquadra. Silva, ficaste com o número de telefone da Dona Maria José, não ficaste?”
Silva acena afirmativamente, tira o telemóvel e passa-o a Pombo. Este faz a chamada e pergunta à Dona do café assaltado se o telemóvel dela recebe imagens. Desliga a chamada, com o seu telemóvel tira duas fotos, aos dois homens mais magros, e envia-as.
Os homens vão ficando mais nervosos, suam, até que um deles se levanta e dirigindo-se a um dos polícias estica os braços, unidos. “Fomos nós, fomos. Acabem já com isso.”
O dos olhos verdes levanta-se rapidamente, dá-lhe um murro nos rins e é, rapidamente, agarrado por dois dos agentes. Vermelho de fúria, grita ao gordo, sentado na mesa. “Tu e mais a porra dos rissóis de camarão.”
Pombo dá uma gargalhada baixinha, o telefone começa a tocar. “Dona Maria José? Sim? Ok, já aí passamos para explicar-lhe o que pudermos.”
Vira-se para os colegas. “São eles. Foram estes dois que assaltaram ontem o café em Paio Pires, como lhes tinha dito ao telemóvel.”

O café esvazia-se momentaneamente. As pessoas que observavam do lado de fora, vão entrando, procurando saber o que se passou. O dono do café pouco sabe explicar. Silva e Pombo pagam, dirigem-se ao carro e partem.
“Já viste isto? Apanhados por um rissol de camarão?” Pergunta Pombo.
“Mas os melhores rissóis de camarão que já comi. Mas olha lá, podias ter dito qualquer coisa.”
“Não queria dar muito espectáculo, nem sabia se eram eles. Afinal não eram ciganos.
Silva interrompe-o. “E o outro não tinha bigode, foi um tiro no escuro.”
Pombo continua. “Mais ou menos. Não tinha bigode, mas tinha a barba feita, e a zona do bigode era mais branca que o resto. E não foi bem um tiro no escuro. O carro estava lá, eram três, um deles com olhos verdes. Elementar, meu caro Watson.”
Silva olha para o relógio, pega no telemóvel e liga para a esquadra. “Avisaste alguém lá da esquadra?” O outro responde que relatou sucintamente a situação. Silva fala com um dos colegas, pede-lhe para ele avisar o superior do que aconteceu, que ainda vão passar pelo café em Paio Pires.
“Já não vais comprar a BD?” Pergunta, enquanto se dirigem para Paio Pires.

Friday, March 26, 2010

Era uma vez...

Era uma vez…
Eu sei que é uma forma recorrente e recursiva de começar, mas quantos textos não começam assim? E a problemática com que nos deparamos é a do início de uma narrativa. Logo é justo, ou pelo menos expectável, que uma história comece assim. Era uma vez…
Claro que teremos tempo (ou teríamos, porque ainda que tenhamos tempo, não temos vontade) para outras caracterizações, nomeadamente temporais, geográficas, psicológicas e outras que tais.
Mas se o conto tem de começar por algum lado que comece pela sua vez, era uma vez, distinta de outras, ainda que igual a outras tantas.

Era uma vez… Afinal não! Os autores enganam-se, escolhem formas e fórmulas, pensam, repisam nas palavras e frases, avançam e voltam atrás, recomeçam.

Há muito tempo atrás (parece-me melhor!), tão atrás que não guardamos registo de ter existido, havia um reino no meio de um deserto. Como foi ali parar, como alguém decidiu construir alguma coisa ali não sabemos. Seriam loucos, fugitivos, nómadas fartos de viajar, ascetas? Fiquemos na dúvida.
Temos à nossa volta um deserto. O reino encontra-se a sudoeste, a cem quilómetros de uma rota de comerciantes. Não é desconhecido, reina na mente de muitos, maioritariamente como uma fábula, uma lenda. Poucos são os que se afoitam a caminhar cem quilómetros de deserto, areias movediças, tempestades de areia e escorpiões!
Nesse reino, como em quase todos os reinos da Antiguidade e antes dela, há um líder (o nome varia de cultura para cultura). Esse líder tem 30 anos, pele obviamente tisnada pelo sol. É amado pelo seu povo, igualmente encarvoado. É justo, pouco dado, obviamente, a trabalhos manuais, mas amante da sabedoria popular e filosófica. O povo estranha esta tendência, diz em palavras baixas que o rei troca sem pesar uma noite de prazer carnal por uma tertúlia com os sábios, filósofos, mágicos e velhos ascetas.

Um dia esse Rei olhou para o sol. Durante uma hora, não fechou os olhos, tentando, talvez, vencer o brilho do astro pela tenacidade. Em vão, o sol continuou a refulgir, os olhos do Rei sofreram o castigo na impertinência, não ficou cego, mas a visão ficou reduzida.
Nessa noite, o Rei convocou aqueles que se dedicavam à arte do pensamento, da discussão, da oratória. Mas convocou mais alguém. Um viajante que ali chegara delirante, quase morto, e que convidado a ficar não ousou voltar a palmilhar as quentes areias do deserto. O Rei tornara-o o seu pessoal contador de histórias, não imaginadas, assim esperava, mas reais. O que lhe pedia era simples, "descreve-me o que conheces para além do deserto".
Decidiu, naquele dia, que o homem devia contar a todos os outros o que lhe contara a ele. O homem vinha de uma terra onde o sol nascia e se punha no horizonte. Todos os dias, contara-lhe, havia horas de luz, entre o momento em que o sol nascia e o momento em que terminava a sua viagem no céu. Depois vinha a noite, por vezes escura, outras mais clara, havia – dizia o homem - um outro astro, a lua, que por vezes apresentava-se com fulgor, mas sem o calor do sol, outras quase que se ignorava no céu. "Existem estrelas, pontos mais pequenos, brilhantes, e em grande número", acrescentara.
O Rei sonhou com isto, acordado, mas também a dormir. Sabia que a imaginação era poderosa, as discussões, as histórias tinham-lhe provado isso, pelo menos isso. Mas o Rei guardava no seu coração um desejo, queria ver esse espectáculo ao vivo.
O homem contou várias histórias, hábitos, descreveu animais, paisagens, frutos e no fim, como o Rei lhe tinha pedido, falou do sol, da lua, do firmamento estrelado.

O conselho de sábios torceu, metaforicamente, mas num caso ou dois objectivamente, o nariz. Discutiram esta última parte, chegando à conclusão, maioritária, de que o homem estava louco, afinal o calor e fulgor tórridos do sol tinham deixado a sua marca naquele pobre desgraçado. Externamente foi isto que repassou, mas internamente todos sonhavam com aquela possibilidade, criando e recriando nos seus interiores o que tinham ouvido.
O homem terminara com uma frase que os marcara. “Continuo a achar estranho que aqui o sol não nasça, mas o que mais me marca é não poder voltar a ver o sol se pôr.”

Poucos anos passaram, tudo corria na modorra alegre do dia-a-dia. Mas na cabeça de muitos havia o desejo de não morrer sem ver aquele expectante desconhecido, o sol a viajar no céu, a despedir-se por algumas horas e em seu lugar uma escuridão de pequenos pontos luminosos.
Ora, como porventura sabeis, o desconhecido exerce um poder enorme sobre o nosso conhecido, sobre a nossa inércia. O desejo começou a transformar-se em vontade, a vontade em projecto e um dia um grupo de jovens, homens e mulheres, decidiu pôr em risco a sua vida, a sua rotina e pôs-se a caminho, guiados pelo homem.

Riscos e medos pairavam na sua mente. Conseguiremos ver a noite, como o estranho lhe chamara? Se algum dia chegarmos lá, voltaremos? Quereremos voltar? Conseguiremos voltar? Despediram-se dos amigos, dos familiares, do local a que chamavam casa e Reino, despediram-se de um Rei pesaroso, que via e abençoava a ida de alguns aventureiros abençoados pela vida e pela sorte. Ele teria de se quedar ali, não porque quisesse, mas porque sim. Um Rei é um REI e tem obrigações, morais, sociais, políticas e, neste caso, locomotivas.
O grupo partiu e nunca mais voltou. Sei que poucos chegaram a esse local onde o sol nasce e se põe, dando lugar à lua. Foram poucos os que ali chegaram, de lábios gretados, meio loucos. Mas a alegria, a surpresa que tiveram quando viram a finalmente a lua e as estrelas valeu pela viagem, pelas mortes, pelas lágrimas, que a determinada altura secaram.

Terminemos a história. No reino, no deserto, debaixo do sol abrasador, o Rei ia temendo pela vida dos que tinham partido, irritado com a sua condição.
Um dia, já velho, tomou uma decisão. Começaram a retirar as muralhas de um lado da cidade e a reconstruí-las do outro, na direcção que o grupo tomara. A cidade percorreria o caminho até às estrelas. Como se supõe, era uma obra lenta, cansativa e que penou o carinho do povo pelo seu rei.

Dizem que morreu louco, só, desafiado pelo povo que se fartou de estar a carregar pedras de um lado para o outro, consciente da sua condição, das suas latitudes. Mas se é verdade que morreu, não é mentira dizer que ao morrer sonhou com as estrelas, sem contudo as poder ver.