Wednesday, October 03, 2007

Espero o café enquanto escrevo num caderno preto.
Tento imaginar tramas e personagens.
O café chega ao mesmo tempo que uma rapariga de cabelos pretos entra. Com uns olhos tristes, vem apropriadamente de preto. Encarna a beleza triste.
Senta-se numa mesa, pede um café e acende um cigarro. O café esfria à medida que o cigarro é compulsivamente fumado. Ela olha pela janela. Para lado nenhum, talvez para dentro de si. E os olhos tristes, negros, teimando em olhar o vazio.
Decido escrever algo aproveitando a triste musa. Enquanto escrevo, e indeciso quanto a um dos atributos, levanto a cabeça para olhar para ela, desvaneceu-se, saiu.
Apropriado...
Acorda.
São seis da manhã, ainda falta meia hora para o despertador tocar, a bexiga antecipou o acordar.
Levanta-se e vai até à casa de banho ainda com algumas sensações e imagens do sonho que foi interrompido. Faz um esforço para tentar montar o puzzle onírico.
Ele e a namorada. Visitam alguém, mas depois a namorada desaparece de cena.
Há uma rapariga familiar, lembra-se de um desejo de a rever e falar com ela. Fez-lhe um convite para beber um café, convite que ela aceitou.
Encontram-se numa rua apinhada de cafés, por alguma razão, invisível, não conseguem entrar em nenhum. Chove, e os cafés encontravam-se abertos, todos eles. Correm para o carro (de quem é o carro?). Entram, mas ela vai para a parte de trás, entram três gigantes abrutalhados e preenchem os lugares que faltam.
Sorriem, falam, dão-lhe pequenos estalos, sente-se avisado, mas não sabe de que é que o estão a avisar.
Ela, lá atrás, ri, não é um sorriso, é uma risada.
E foi quando acordou. Gosta de tentar relembrar-se dos sonhos, sabendo que adormecido os sonhos fazem mais sentido do que quando está acordado. Há um universo de leis que são obedecidas quando se está dormindo. Quando se acorda nem tudo faz sentido, ou quase nada.
Sabe que à noite a maior parte destes pormenores ter-se-ão perdido no seu inconsciente.
Deita-se novamente, afinal ainda falta meia hora até ao despertador tocar. Sabe que dificilmente adormecerá. Tem o vago desejo de reecontrar os caminhos do sonho, espera uma sequela ou repetição do mesmo.
Lembra-se de em criança ter um sonho recursivo e repetido. O sonho, de que não se lembra claramente, era uma repetição de algo anormal, e que ao mesmo tempo, e se calhar por isso mesmo, lhe metia medo. Lembra-se de com seis ou sete anos acordar lavado em suor, e com medo de voltar a fechar os olhos.
Agora que pensa nisso lembra-se de sonhos em que queria correr e não conseguia. Por mais que tentasse o corpo só obedecia em câmara lenta. Ninguém corria atrás dele, ele não fugia de nada ou ninguém, mas a angústia de não andar normalmente, a angústia de esforçar todo o corpo e os músculos para dar um passo normalmente. Lembra-se de acordar extenuado e dorido.
Levanta-se com o toque do despertador, não adormeceu sequer.
Sente-se nostálgico, e atribui a culpa ao sonho. Como é possível sentir-se nostálgico por alguém que não reconheceu? Por alguém sonhado? Estará o seu subconsciente a transmitir-lhe alguma mensagem?
Durante todo o dia sente-se incompleto. Se há coisa que o aborrece é não saber dar nome a alguém, ou situar alguém, passa largos minutos a tentar descobrir de que filme conhece aquele actor, de onde conhece aquela pessoa que lhe sorriu e perguntou como ia. Hoje é o sonho que o inquieta.
Tenta fazer um inventário de namoradas, paixões e platonices parecidas.
Vai de autocarro a pensar nelas. Janta com a namorada e dá-lhe menos atenção que habitualmente. Ela pergunta-lhe o que se passa. Responde que nada e permanece ali, entre a realidade e o onírico, tentando fazer uma relação que o satisfaça.
Chega a casa e deita-se, esperando que a cama o ajude a relembrar-se de alguma coisa. Tenta fazer o exercício contrário, em vez de se lembrar das namoradas tenta relembrar-se da rapariga do sonho. Nada. Lembra-se que os olhos o marcaram, mas acha que era mais porque lhe abriam alguma porta para a memória. Volta à lista mental, nenhuma delas tem olhos que o tenham marcado especialmente.
Olhos….olhos…olh…
Adormece.
Acorda sem se lembrar de alguma experiência no império de Morfeu.
Age segundo o seu ritual. Lava-se, veste-se e mete-se no carro até ao comboio. Leva um livro que não consegue ler, a rapariga sem rosto assalta-lhe constantemente a memória.
O trabalho, naquele dia, não rende. Os colegas acham-no mais distante, menos brincalhão e concentrado do que habitualmente.
A namorada telefona-lhe à hora de almoço a perguntar como está, que não lhe telefonou de manhã. Sente preocupação na sua voz. Diz que está cheio de trabalho, desculpa-se com isso para a despachar e dizer-lhe que só a verá no dia seguinte.
Esqueceu-se da namorada nestes últimos dois dias, se não tivesse jantado com ela nenhum pensamento teria tido em que ela aparecesse.
Anda obcecado com a rapariga irreal. Como é que um sonho pode alterar a vida exterior e interior de alguém?
Passou-se uma semana.
Nesta semana comeu pouco, quase nada; discutiu fortemente com a namorada a meio da semana. Às 22h ela telefonou-lhe para saber como estava, já tinha adormecido e começara a sonhar.
Acha que estava a sonhar com a rapariga do sonho quando o toque polifónico com a música I Want you to Want me o acordou, gritou com a namorada, não lhe deu possibilidade sequer de se desculpar, ainda que não existisse razão para isso. Não voltou a sonhar, nem a falar com ela. Cada vez que o telemóvel toca ele desliga-o.
O telefone, em casa, está desligado da ficha, e o telemóvel já quase que não é ligado.
Ontem, alguns amigos estavam à porta de casa com a namorada, mal-humorado espantou-os com fel. Contou algumas verdades desconhecidas de alguns, não se importa que tenha aberto brechas no grupo, espantou-os com a sua (até aí desconhecida) hostilidade.
Vive para alguém que não conhece, que não tem existência. Não pensa na estranheza disto tudo.
Adormece e encontra o objecto da sua obsessão num sonho. Finalmente, ela sorri-lhe e rapidamente o sorriso torna-se num esgar de maldade. O corpo treme-lhe, qual corpo?
Tenta fugir, mas não consegue. Ela aproxima-se dele, que tenta fugir, mas o mais que pode é fazê-lo em câmara lenta.
Encontram-no dois dias depois, deitado, de barriga para baixo, num coma profundo, com um ar de tristeza absoluto. Não reage a nada. De vez em quando grita, por breves segundos, mas um grito que assusta quem o ouve, um grito que relembrarão toda a vida, curta ou longa que seja.
Mais valia estar morto, mas não está, está adormecido, na presença da sua obsessão por uma breve eternidade.
Pós-Título: Os Três Gigantes
Publicado no nº2 da Callema

Friday, May 18, 2007

Mais uma Breve Narrativa

Dez da noite, e faz ainda um calor sufocante. O chão transpira o calor retido durante o dia.
Tenta seguir a custo. As ruas estão prenhas de gente. Comemora-se a festa anual do Santo da cidade. Haverá um número ínfimo de fiéis assíduos no salão frio da igreja.
Mas, pelo menos uma vez por ano, o Santo é pretexto para comes e bebes, concertos, venda de artesanato e algum desvario sexual.
Coloca-se na fila das farturas.
Enquanto espera, lembra-se dos fins de semana da infância, no Alentejo fronteiriço na aldeia onde nasceram os avós. Uma aldeia pequena, com pouco mais de mil habitantes e que tem a proeza de no largo ter dez tabernas, só no largo, outras há espalhadas e todas conseguem dar o pão nosso de cada dia aos seus proprietários!
Lembra-se de uma manhã chuvosa e fria. Levantara-se por volta das nove horas e a avó dera-lhe quinhentos escudos para comprar farturas. Trouxe um saco cheio, hoje a unidade custa um euro!
Nunca as farturas lhe souberam tão bem, juntamente com uma caneca de café. Naquela aldeia, perdida entre Espanha e o Guadiana e o resto de Portugal.
Na altura o Alentejo era uma maçada. Demasiado frio no Inverno, angustiantemente quente no verão, e com o Pai, de verão e inverno, a lançar a âncora naquela aldeia.
Hoje é da cidade que está farto, farto dos carros na estrada e em cima dos passeios, fartos das pessoas que não sabem sorrir e que só querem saber da vida dos outros para a quadrilhice, da ausência de espaços verdes e da incoerência humana que nos tempos de lazer preenche os centros comerciais. Quer faça frio, quer faça calor.
Aos cinquenta e cinco anos apetece-lhe fugir para o Alentejo. A pré-reforma, ainda que curta, dar-lhe.á o suficiente para ele, e um quintal e uma pequena horta dar-lhe-ão mais alguma folga à carteira.
Um ano depois, numa noite mais quente que esta, numa festa associada a outro Santo, pensará na vida que levava na cidade, ao comprar uma fartura, numa aldeia alentejana.
"Uma fartura e meia dúzia de churros, se fizer favor."

Tuesday, April 24, 2007

O tempo dispersa-nos. A frase, não passa disso mesmo, é uma observação, mas não uma regra.
Vinte anos passados vejo como o tempo se uniu para nos juntar. Fez-nos bons amigos, rimos e chorámos, apoiámo-nos e fomos o ombro do outro. Andámos na mesma estrada, mas ao contrário de outros optámos por fazê-lo juntos.
Até que hoje o tempo começou a dispersar-nos.
Definitivamente. E a contra gosto!
Olhando para trás é difícil ver as coisas correctamente. A perspectiva não é a melhor, hoje pelo menos. Os acontecimentos flúem até mim sem qualquer ordem, não é um flashback ordenado, assim de repente nem sei ordenar tudo o que aconteceu.
Talvez por isso prefiro começar pelo fim ou pelo seu começo. Reunimo-nos todos em minha casa, esta era a minha vez. Foram aparecendo consentaneamente com a hora do fim do expediente. Primeiro a Leonor, depois o Carlos e a Vanda, aparecendo no fim e num acordo surdo o Rui e Mónica.
Pelo menos duas vezes por mês juntamo-nos a uma Sexta-Feira em casa de alguém, para falarmos, comermos, discutirmos, para nos vermos simplesmente! Para vermos um filme ou discutirmos a politiquice nacional!
Não consigo pensar no tema de conversa, estou demasiado cansado. Mas foi a última vez que estivemos todos juntos. Hoje pela manhã descobri que a Mónica tinha morrido, num acidente de carro. Não fez uma curva e caiu duma altura significativa, tendo perdido instantaneamente a vida ou pelo menos é o que dizem. Passámos o dia atarantados, não sabendo como agir ou mesmo reagir. Fomos todos apanhados de surpresa, ainda ontem estava connosco, a rir, a falar, conversar. Ao menos estivemos com ela, o Alberto, o marido estava em trabalho numa Feira de Editores Internacional. Falei com ele durante a tarde, vinha a caminho, estava à espera do avião e estava demasiado abatido para dizer muita coisa com nexo. Falarei com ele amanhã. Também eu estou cansado, vou dormir e pegar neste proto-diário de manhã.
Afinal o sol ainda não nasceu. Eu sem sono, perdi uma das minhas melhores amigas, tragicamente. Comecei este diário como uma forma de encadear ideias e de manter alguma calma, quando escrevo o nervosismo desaparece um pouco, escrever nas teclas, pensar e encadear uma linha de raciocínio acalma-me, alivia-me.
Conhecemo-nos na Faculdade. Não foi amor à primeira vista, fomo-nos conhecendo e criando os laços que ainda hoje nos prendem. Estamos unidos pelo tempo, pela amizade, pela cumplicidade, pela preocupação, pela experiência. Já passamos por tanta coisa juntos, que…
Somos uma família, penso que é isso que somos. Vivemos as nossas vidas, temos os nossos problemas, discutimos mas a amizade mantém-se.
Todos entrámos para uma Faculdade de Letras, com sonhos e desejos um pouco ainda enevoados. 20 anos depois um de nós trabalha na área, sendo professor. Os outros pairaram por ali durante algum tempo, mas depressa encontraram outros interesses.
A Mónica era designer, amadora mas boa naquilo que fazia. Claro que ter um marido editor sempre ajuda, mas nem era este o caso. Ela fazia a direcção artística de uma editora que não a do marido. Quantas vezes brincámos com ela dizendo que o seu sucesso ainda seria o fim da carreira dele? Sempre na brincadeira porque cada um deles é (era no caso dela, alguma vez me habituarei a falar dela no passado?) bom na sua área de trabalho.Na 6ª feira falava de como poderia ter ido com o marido, mas estava a terminar um trabalho com alguma urgência e de qualquer modo não lhe apetecia ir a “coisas daquelas, ainda por cima eu trabalho para a concorrência”, se ela soubesse! Uma estúpida Feira em troca da sua vida! Que raio de desfaçatez, a do destino!
O silêncio conforta-me, e afronta-me.
O silêncio transforma o que sinto, leva-me a outros estados de espírito. Sinto que prefiro o barulho, o ruído ao silêncio, pelo menos na maior parte das vezes. Estar em silêncio não é natural, embora aspirar pelo silêncio seja um graal apetecido.
É no silêncio que me vejo só, e mesmo sendo como sou prefiro estar acompanhado.

Monday, April 23, 2007

O cão

Criou celeuma a nível regional, mas também o faria a nível nacional se se tivesse proporcionado.
O cachorro era ainda novito, pouco mais de um mês de vida. Era escanzelado, estava sujo e tinha levado uma panada de um carro.
Andava por ali, em três pernas, quando uma senhora o viu.Começou a pensar em voz alta, como é hábito de muitas das senhoras de idade. Uma a uma várias pessoas se (a)chegaram a ela e foi-se formando uma turba indignada com o estado do animal.
Chamaram-se jornais e rádios, a televisão também foi avisada, mas somente o jornal regional se dignou a aparecer.
Em frente, sem direito a opinião ou a uma análise, por parte da turba, estava o seu dono. Junto à barraca, triste e choroso pelo estado do seu amigo, fraco pela fome e aturdido pelo frio olhava sem esperança para o cachorro. Tinha cinco anitos, vivia durante o dia na terra, no pó de um baldio, com a avó como companhia.
Dele ninguém falou.
Ninguém o viu.

Gostava de ter escrito isto


"The past is a foreign country: they do things differently there"
L. P. Hartley

Tuesday, April 17, 2007

Talvez tenha encontrado a resposta para ter o corpo que tenho.
Lembro-me da euforia dos intervalos. Nestes jogávamos à bola, corríamos, brincávamos. Jogávamos à apanhada, e mais mil e uma coisas no pequeno espaço de tempo livre para o fazer.
Ia almoçar a casa, e depois levava um lanche para a escola. Quantas vezes o comia antes de entrar para a sala de aula?Lembro-me de algumas mães a perguntar-me, penso que entre a preocupação e a coscuvilhice, “Tiago, não almoçaste?”. E a resposta sempre a mesma, na ponta da língua. “Sim, mas se não comer agora, logo vou perder tempo no intervalo” .
O mais importante era ter o intervalo livre, e ao mesmo tempo comer.
Poderá ser uma das respostas:p
Míudos...

Wednesday, April 11, 2007

METRO


Acorda, mais uma vez, depois da hora. Já sabe que vai chegar atrasado à aula. Os colegas estranhariam o contrário.
Vários minutos depois entra no metro, que está mais atafulhado do que ele gostaria. Descobre e senta-se num banco milagrosamente vagado.
Olha para além do vidro, olhando para as pessoas na outra linha. Volta a olhar em frente, e vê a mulher que está sentada à sua frente. Pelas suas contas terá pouco mais de trinta anos. Morena, extremamente bonita, mas com um ar demasiado triste.
Ele olha novamente para ela e pensa no quão bonita ela é. Baixa o olhar para a mão e vê uma aliança, pensa em como há homens com sorte.

Novamente pouco dormiu. Com 34 anos a vida é, cada vez mais, um inferno. O casamento de sonhos há muito que se desvaneceu e em pouco tempo o Príncipe Encantado transformou-se num sapo rude e violento.
Mais uma vez bateu-lhe, gritou-lhe e tudo sem ela saber muito bem porquê. Hoje já acha que não é necessário dar uma explicação, ele não é propriamente muito racional na maior parte das vezes.
Hoje dá graças a Deus por não terem tido filhos. Ele não os merece, e as crianças não mereciam viver assim. Está cansada, talvez a culpa seja sua. Enquanto se dirigia para o metro foi-se formando no seu interior o firme desejo de terminar com a sua vida. O fim é melhor do que a continuação deste calvário, pensa desesperadamente. As forças parecem faltar-lhe, está farta e cansada e o fim parece ser a única saída definitiva. Quando entra no metro a decisão está tomada, falta decidir quando.Enebriada nestes pensamentos sombrios, não sente que alguém se senta em frente dela.
Um pouco depois os seus olhares chocam, ele olha para ela com algum interesse, simpatia em, será que, com desejo?
Olha-o nos olhos e sorri.

Que parolo, diz ele para si mesmo. Sente-se envergonhado, sem saber muito bem porquê. Por a mulher lhe ter sorrido? Por lhe ter olhado nos olhos quando ele olhava para ela?
A verdade é que se sentiu envergonhado, sentiu a cor invadir-lhe a rosto.Olhava para ela, pensando como ela era bonita, como tinha uma cara perfeita e nos seus olhos tristes, imensamente tristes. Como é que alguém tão belo pode ter uma tristeza tão palpável?Não namora há uns meses, namorou duas vezes por muito pouco tempo. Sabe que a culpa dos naufrágios emocionais é dele. Continua a procurar um amor utópico e idílico, uma coisa cinematográfica sem demasiados contrapontos. Criou mentalmente um tipo de relação que não existe, uma mínima discussão é razão para virar as costas. Não sabe ainda como lutar pelo amor, acredita que este vem em pacote pronto a vir servido. Sente-se traído pela sua própria forma de ser, mas tenta desculpar-se com as raparigas que até agora conheceu.
Volta a olhar para ela, sente que ela não olha para ele de propósito. Devo estar ainda vermelho o suficiente para me poupar...Sorri!
Ela olha-o novamente nos olhos. Sorri por ver que ele a continua a olhar. Desta vez contém a vergonha e suporta o seu olhar. Sente-o perscrutá-la e avaliá-la de algum modo. Sente o olhar como um elogio, há muito tempo que não sentia ninguém olhar para si com desejo, interesse. Sente alguma alegria pelo facto.
Esqueceu-se, por completo, dos pensamentos sombrios que a atacavam à poucos minutos atrás.
Ou melhor, trocou-os por outros. Como uma viagem de metro pode mudar tudo.
Levanta-se, inclina-se para o rapaz, que desvia automaticamente o olhar e beija-o na face.
Volta para casa, faz as malas e, mais tarde, irá estar de volta a casa dos pais. Sabe que os vai preocupar, mas sabe que não lhe vão virar costas. É tempo de recuperar a alegria e a dignidade. Sabe que voltará a ser feliz e deve-o a um estranho. A vida é, ela própria, estranha.Nunca saberá o nome dele, mas estar-lhe-á eternamente grata.
Recebeu o beijo com surpresa, estupefacção mesmo. Ficou estupidamente alegre, como quem encontra um tesouro perdido sem estar à espera. Dizer que aquele beijo mudou a sua vida seria um exagero e em certa medida uma mentira. Mas que mudou a sua forma de olhar para o amor e para as mulheres, isso é verdade. Mas não tentemos dar demasiadas razões ou explicações para tal caso, cada homem é um homem e o coração funciona de modos tão diferentes que ficaríamos aqui o resto da vida.

Tuesday, April 10, 2007

Uma poesia para vós

Como Ulisses te busco e desespero
Como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou.

Só não me canta Homero.
Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não tendo tudo são castigos.

Manuel Alegre

Monday, April 09, 2007

Na solidão
chora-se
mais

livremente.
Sentado,
escrevo.

Num velho caderno que me foi oferecido
há imenso tempo,
para que me lembre por quem.

Encontrei-o no meio daquelas coisas
esquecidas e perdidas
que temos em casa.

Achei-o ideal para a história que tenho em mente.
E vou escrevendo.
Até que me apercebo que as folhas acabaram,
e o mesmo não acontece com a história.
E não tem sentido,
não tem sentido,
terminar a estória noutro caderno.

Esta narrativa pertence a este caderno.
Triste pelo fim abrupto,
caminho
até ao pontão.
Olho para o caderno,
numa tentativa muda
esperando que ele me diga se quer ir inteiro ou separado
de encontro ao frio molhado das águas.
Viro as costas, depois de lançar o caderno.

Escrevo,
sentado.

Tuesday, April 03, 2007

Tirei uma mão cheia de amêndoas, daquelas caramelizadas.
Relembrei o meu pai, Deus o tenha, “10 segundos na boca, dez anos nas ancas…”. Tirei mais umas quantas. Sorri, um sorriso triste, é sempre triste quando me lembro dele. Morto há um ano, num estúpido acidente de viação. Não são todos os acidentes estúpidos?
Olho para o meu filho, que aos três anos não sente muito a falta do avô, já o esqueceu. Eu relembro-o várias vezes. A alegria com que vivia, um sorriso sempre pronto a desfazer a cara mais triste. Uma saúde de ferro. E de que valeu isso perante o camião com o pneu furado que foi de encontro a ele?
Lembro-me de ser pequena e ir a uma igreja com os meus pais. Das poucas vezes que fui a uma igreja. Talvez a primeira vez, num frio e molhado mês de Abril, numa igreja pequena, no Baixo Alentejo. Ali, ouvi a história da Páscoa. Como um homem, que também era Deus, tinha morrido numa cruz. Por todos nós. E o meu pai desfeito, o caixão ficou fechado, nada do que lá estava dentro nos poderia lembrar dele. Um pedaço de carne desfeito, ou pedaços a acreditar no meu marido. A cruz deu lugar a um monte de metal contorcido.O ano passado lembrei-me daquela igreja, do significado, original, da Páscoa. E o meu pai morto.
“Mãe, dá-me um chocolate, um ovo desses. Dás-me?”
Agarro num ovo de chocolate, da marca que o meu pai me comprava, desembrulho-o e dou-o ao meu filho. Tento sorrir. Louro como o pai, irrequieto como a mãe. Guloso como os dois.
“Vamos?” –pergunta o meu marido. Depois de encher o carro com as três malas. Tanta mala para três dias.Pego em mais algumas amêndoas, coloco duas na boca e sorrio. Chamo o António, visto-lhe o casaco. Vamos passar o fim de semana a casa da minha mãe. Será que ainda conseguirei sorrir na presença dela?
E assim entro no carro, a mastigar as duas últimas amêndoas, e o António lambuzado, a comer o ovo da Páscoa.


Pós-Título: Páscoa

Fantasia

O dia nasceu mais frio do que normal.
Pela primeira vez em anos, um manto branco cobria a terra. As crianças acordaram num misto de surpresa, medo e curiosidade. Os mais velhos perscrutaram os céus. Reuniram-se em volta do ancião, descansaram com as suas palavras, e tentaram voltar ao seu dia a dia.
No meio da aldeia a cabana do velho homem não denotava qualquer tipo de ansiedade. Tudo corria numa calma normalidade.
Sentou-se cansado na sua cadeira e pediu à mulher que reunisse as crianças da aldeia.
Alguns minutos passaram, até que a sala que servia de cozinha albergasse uma dúzia de crianças. De olhos abertos e ansiosas esperavam pela razão da visita.
Devagar, quase ausente o velho olhava para elas, sorriu momentaneamente, até que suavemente pediu à mulher que lhes fizesse uma bebida quente à base dumas ervas.Olhando para aquelas crianças pensou nos pais delas, em como os tinha visto crescer, enamorar-se uns pelos outros e como estes pequenos rebentos tinham germinado.
“Sabem a razão pela qual estão aqui?”, perguntou.
Um mais afoito respondeu que não.
“Quero contar-vos uma história. Nada mais que isso.”Viu nos seus olhos a importância do acontecimento. Entre eles o relato das coisas transmitia a vivacidade da vida, a tragédia, os diferentes elos que nos uniam uns aos outros. Mas claro que tudo isto era somente uma parte da questão, os elos também nos prendiam, oprimiam, e levavam-nos a fazer coisas que não queríamos. Pelo menos era isto que ele gostava de pensar, era uma desculpa e ao mesmo tempo uma força para continuar a viver. Era um peso que lhe saía de cima. Aceitou agradecido o copo quente que a mulher que o servia há tanto tempo lhe estendia.
Bebeu um pouco, juntou as recordações e começou a história.

Monday, April 02, 2007

"If songs were lines in a conversation the situation would be fine" - Nick Drake

Tentativas pseudo-poéticas

Fundo preto.
Balão vazio.
Oco.
Seco.
Morto.
Devaneios pouco claros
que infelizmente
não levam a lado
ALGUM !

Saturday, March 31, 2007

Confesso que nunca percebi, ainda tenho dificuldades, em perceber as mulheres, juntando a isto o timing a minha vida amorosa fica contada, pelo menos parte dela.
Nunca entendi o disse que não disse e o não disse que disse próprio das mulheres. Nunca percebi no sorriso, no riso, no olhar algo mais do que aquilo mesmo.
Ela era a minha melhor amiga, morávamos distantes um do outro, mas as cartas mitigavam qualquer distância. Víamo-nos de vez em quando, ríamos, conversávamos, ela buscava a minha presença e eu a dela. Nunca pensei nela de outra maneira que não como amiga, não porque não gostasse dela, mas porque me via inferior, inadequado, ela era inacessível.
Um dia alguém me disse que ela gostava de mim, e eu que não, como era possível? De mim?Passaram-se meses, as cartas continuavam a fluir, e os meus pensamentos caminhavam de vez em quando para aquela conversa. “Ela gosta de ti.”
Convidei-a para ir ao cinema. Falámos um pouco, comprámos água e pipocas. Depois de acabadas as pipocas procurei a sua mão no escuro e coloquei-a na minha, apertando- -a.Passámos assim os últimos 30 minutos de filme, de mão dada, mas a mão dela estava frouxa, senti-lhe um misto de sentimentos, por um lado não respondia como eu esperava, por outro não a tirou bruscamente. Manteve-se ali, de encontro à minha numa frieza constrangedora, mas ao mesmo tempo como prova de uma amizade enorme.
Levei-a a casa, falámos um pouco mais e deixei-a imerso nos meus próprios pensamentos, sem termos tocado no que tinha acontecido.
Nessa semana descobri que namorava há dois meses, pensei na minha mão na dela, e na forma como ela, humanamente e com amizade, me deu a sua resposta, sem articular uma única palavra.Chamei-me de estúpido umas quantas vezes, teria perdido o amor da minha vida?
Vi-a com alguém que não conhecia, com alguém que invejava por uma questão de timing e de incompreensão.
Claro que é possível que ela nunca tenha gostado de mim.

Desejo...

...olhar os olhares,penetrar no espelho da alma
tentando ignorar a teia das palavras.
Parece fácil no papel.

Memórias

Olho para trás e sorrio. Apesar do quarto de século, acredito que já vivi algumas coisas engraçadas. Pelo menos para mim…
Acho que nos esquecemos, facilmente, do que experienciamos diariamente. E isso é o que nos faz ser nós mesmos. Somos resultado de tudo. Da rua em que vivemos, dos amigos que temos e tivemos, das experiências por que passámos, pelas viagens que fizemos, pelo que vimos, etc. Acho que já perceberam o ponto. Como humanos gostaríamos de voltar atrás e poder mudar algumas coisas.
Era bom, mas ainda bem que não podemos. Desse modo podemos (e devemos) aprender com os erros.
Olho para trás… Ter pais alentejanos permitiu-me uma enormidade de experiências (uso enormidade, pelo que vou dizer a seguir e comparando com essa realidade) em relação ao que vejo hoje em dia. Tive oportunidade de conhecer a vida “citadina” (à falta de palavra melhor) e a rural. Tive oportunidade de ir ao teatro e ao cinema, mas também andei de burro, de carroça, fui buscar água à fonte, alimentei bezerros, assisti a vacalhadas, fui à pesca e à caça, apanhei lagostins, sei lá mais o quê.
E para o bem e para o mal, isso fez de mim o que sou hoje. Os verões eram passados aqui pela praia, por Montargil e por Montejuntos, perto do Redondo/São Pedro do Corval. A barragem, as hortas, as caminhadas (se calhar era por isso que não era tão redondo) pelos montes e planícies alentejanas, Montargil (um dos meus locais favoritos), Ponte de Sôr (outro) são imagens que habitam cá dentro. E por vezes sinto falta de andar por ali, não só em memória, mas também literalmente.
Foi em Montargil que comecei a namorar com a minha trolhinha (em 2006), foi em Montargil que conheci muitos dos meus verdadeiros amigos, no ABS durante os verões. É de bom tom o português ser saudosista. Está na herança genética. Mas pode ser bom, viver e reviver as experiências passadas. É este o meu desejo e a minha vontade, em próximos posts.

Gostava de ter escrito isto I

"Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n´esses estreitos annos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. (...)
- Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corôa imperial de D. Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo...Não! Não sahia d´este passinho lento, prudente, correcto, seguro que é o único que se deve ter na vida.
- Nem eu! - acudiu Carlos com uma convicção decisiva. (...)
- Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente
às seis! Não apparecer por ahi uma tipoia!...
- Espera! - exclamou Ega. Lá vem um "americano", ainda o apanhamos. - Ainda o apanhamos! Os dois amigos lançaram o passo, largamente. (...)
-(...) Com effeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ancia para cousa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder... A lanterna vermelha do "americano", ao longe, no escuro, parára. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!"

Tentativas I

6ª Feira 21h00
A porta fechou-se. Barulhos de passos ecoaram pelas escadas até que percorreram calmamente o espaço do prédio até ao carro.
Com calma aparente o carro foi ligado e posto em andamento. Cerca de um quarto de hora depois a polícia chegava ao local.
6ª Feira 22h15
José arruma o carro a cerca de meio quarteirão de casa. Anda um pouco e é reconhecido por um vizinho. Dois polícias correm para ele e dão-lhe ordem de prisão. Não reage, nem mostra qualquer sinal de surpresa. Apático é conduzido para o carro da polícia e depois para uma pequena cela onde passa a noite.
2ª Feira
Acordo pelas seis da manhã. Deixo-me estar um pouco mais. Estico o braço e sinto o vazio. Quando será que me acostumarei à sua ausência? Ser polícia não é fácil, mas é o meu emprego e o que eu gosto de fazer.
De qualquer maneira ser polícia em Portugal é muito mais seguro do que nos EUA. No entanto a mulher do polícia sofre sempre, seja num país pequeno e calmo seja numa metrópole violenta. Mas quem sou eu para inventar desculpas para o comportamento dela ou para o meu? Não soubemos viver a nossa vida a dois, fosse pelos ciúmes mútuos, fosse pelo medo de um ou o zelo do outro. Amámo-nos, tememos o nosso amor e começámos a criar muros, dúvidas e fossos. Deixámos de ser dois num e passámos a ser um em dois. Éramos um para os outros e um para o outro. Estranhámo-nos. Levanto-me.
O corpo dói-me todo depois de estar deitado quase 36horas seguidas. Passei o Domingo na cama, pelo simples facto de não me apetecer levantar para nada. As únicas pessoas que me apeteciam ver eram aquelas que não necessitam da nossa resposta, as da televisão. Levantei-me para mictar e beber um copo de leite.
Como vivemos hoje em dia em prole dos outros. Senão fosse por eles não me levantava da cama. Ponho água a ferver para o café. Vou à casa de banho e desfaço a barba. A Luísa gostava de me ver de bigode. Dizia que a fazia lembrar um actor qualquer. Desde que a Luísa se foi que deixei crescer um pouco mais em baixo, de modo que agora tenho pêra completa. Gosto mais assim. O telefone toca. Que toque! Nada se interpõe entre mim e a minha higiene pessoal. Não saio da casa de banho antes de estar completamente lavado. Já vestido vou para a cozinha e faço o meu café. Forte e simples, sem açúcar. O telefone toca outra vez. Levanto-me contragosto e atendo. Querem-me na esquadra imediatamente. Tem a ver com um suposto caso de violência doméstica na 6ª Feira. Para que raio precisarão de mim? Tudo me lembra dela. Nunca lhe fui infiel, vistas bem as coisas nunca lhe fui fiel também. Nunca olhei para outra mulher senão ela. Mas ela sabe tão bem como eu que nunca ocupou o primeiro lugar na minha vida. Eu e a minha profissão est

Ao vento

Sentado junto ao rio observa o horizonte.
Do outro lado a outra margem, no meio um rio brilhante e calmo.
Pessoas e animais vão passando atrás e à frente.
“Combinei com a João que íamos almoçar lá amanhã?”, “Amanhã? Mas amanhã…”;
“Venha, Bernardo. Porte-se bem! Ai que apanha, Bernardo.”;
“Não sei como conseguem comer aquelas gorduras todas, Deus me…”
Sente-se como um leitor caótico de livros rasgados ao meio. Sente-se uma página rasgada de um livro olhando para outras páginas que são lançadas pelo vento para lado nenhum…

Aniz

Lembro-me de descer uma rua com uma pesadíssima garrafa de aniz!:p
Era pequeno, três(?) ou quatro (?) anos, talvez mais, quiçá. Na terra do meu avô, no Alentejo (Montejuntos - junto à fronteira e ao Guadiana), no inverno, numas festas quaisquer, com lama até ao joelho (aqui é figura de estilo), via o meu pai comprar rifas.
Farto da triste sina, foi-se embora. Pedi-lhe dinheiro para uma rifa, para ser eu a comprar. Foi andando. Dois ou três minutos depois, eu gritava por ele, a descer pela rua com uma garrafa de aniz na mão, contente, excitadíssimo por tão grande prémio. Diz-me ele que ainda nesse mesmo dia ganhei outra garrafa, dessa não me lembro, nem tenho ideia alguma. Só da de aniz...