Sunday, June 26, 2005

Sentado num banco do jardim aquece os velhos ossos ao sol.
Com 70 anos, sem filhos e viúvo, vive sozinho. Não tem, sequer, animais.
Bebe um café religiosamente num dos cafés do bairro.
As tardes são passadas conforme as estações do ano. No verão senta-se à volta de uma das mesas do jardim, a ver outros, como ele, a jogarem ora cartas ora dominó.
A sua vida é assim marcada pelos breves momentos em que se "dá" aos outros. Conversa, opina, embora nunca fale de si.
É somente mais um entre muitos, não tem amigos, somente conhecidos. Já não vê interesse em realmente dar-se aos outros, em depender ou dispender, fartou-se. Está velho e espera a morte, pacientemente.
Já não se interessa por aquilo que os os outros mostram interesse.
Não padece de nenhuma doença, em 70 anos foi 2 ou 3 vezes ao médico.
Volta para casa pensando na vida que levou, nos amigos que teve, na esposa que morreu. Não sente mágoa ou dor, Deus assim o quis, pensa estoicamente.
Vive à espera do fim. E isto define a sua vida!

Tuesday, June 14, 2005

Breve Narrativa com Palma ao Fundo


Mais uma vez a noite acabou em discussão. A esposa foi para o quarto. Ele ficou na sala, a olhar para o aparelho de televisão sem prestar atenção a nada. Ficou por ali cerca de uma hora. Quando chegou ao quarto ela dormia. Ou fingia.
Deitou-se a seu lado. A distância que os separava parecia um fosso. Tentou dormir, fechou os olhos. O pensamento fugiu-lhe, ou melhor passeou pelos labirintos da memória. Lembrou-se de ver um concerto acústico, numa loja em Lisboa.
Há quantos anos.
Lembrou-se de estar com um amigo. Chegaram horas antes. Foram fazendo tempo.
A salinha foi-se compondo. Nenhum deles namorava. O amigo lançava piropos baixos, que só ele ouvia, a cada rapariga jeitosa que passava. Ele observava.
A alguns metros deles duas amigas sentaram-se. Olhou para as duas, mas o olhar fixou-se numa. Ela olhou para ele, notou que a observava. Desviou o olhar, ele envergonhado também. O artista demorava a chegar. Olhava para ela sub-repticiamente. Notou que ela também o fazia.O concerto começou. Uma das músicas diz:
Porque terras de sonho andaste,
Que Mundo te recebeu,
Que monstro te meteu medo
Que anjo te protegeu,
Quem foi o menino que o teu coração prendeu ?
Ele olha para ela, olha para o seu sorriso. Sente-se a planar. Nem sequer sabe o nome dela. O amigo olha para ele, sorri e diz: Aquela é gira.E ele pensa: Cala-te. Não estragues o momento. A música acaba. Olha para o músico, e bate palmas.Uma nova música começa a ser tocada.
Os teus olhos são cor de pólvora e o teu cabelo é o rastilho
O teu modo de andar é uma forma eficaz de atrair sarilho
A tua silhueta é um mistério da criação
E sobretudo tens cara de anjo mauCara de anjo mau, tu deitas tudo a perder
Basta um olhar teu e o chão começa a ceder
Cara de anjo mau, contigo é fácil cair
Quem te ensinou a ser sempre a última a rir?
Os seus olhos encontram-se, ela sorri timidamente. Ele sente, mesmo, o seu chão tremer. A troca de olhares demora uma eternidade. Já não se lembra quem o afastou, mas isso também não interessa. Olhar para ela lembra-lhe uma outra música: E o paraíso no teu olhar.
O concerto acaba. Ele ainda fica por ali uns momentos. O músico está a dar autógrafos. Nota que ela também ficou. Passa algumas vezes por ele. Lentamente, como que a dar oportunidade para que ele lhe diga alguma coisa. Ele não tem coragem. De dizer olá, um simples oi.
Não sabe porque é que se foi lembrar daquele concerto agora, neste momento. Lembra-se da frustração na ida para casa. Lembra-se de uma música lhe lembrar o fracasso.
Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem
Não se lembra da cara da rapariga, nem de qualquer traço distintivo. Da cor do cabelo ou dos olhos. Nunca soube o nome dela.
Há felicidade a pequenos passos de ti, o medo de falhar, de tentar pode levá-la embora. Olha para a mulher, chama-a. Ela acorda facilmente, se é que alguma vez estivera a dormir. Tem os olhos vermelhos. Ele pede-lhe desculpa e abraça-a.Uma outra música lhe vem à mente, mas facilmente ele afasta-a.
E quando te voltar a apetecer seguir em frente,
Se me quiseres acompanhar,
Canta uma canção de amor,
Pinta os olhos cor de mar...
Põe no teu peito uma flor,
Traz um amigo qualquer
E vamos juntos abraçar o sol nascente
Agora a música é deles. A letra são eles que a vão escrever juntos…

Sunday, June 12, 2005

Automitografia (4ªpt)

O limbo pode ter o sentido de local para onde se deita o que já não é útil, eu já não me considero muito útil, mas daí a ser um inútil, enfim! Gostaria que encarassem o limbo literário como uma dimensão para onde nós, personagens e locais da literatura, vamos depois de acabadas as histórias ou estórias. Seria de muito mau gosto que logo após a nossa utilização morrêssemos. Ora eu nunca estive tão vivo, em cada leitura eu revivo, em cada adaptação (seja teatral ou cinematográfica) eu ganho mais força e é nesta força e no vosso coração que eu continuo vivo. Vejam o limbo literário como um local para onde todos nós personagens vêm depois do fim. Nós não morremos, estamos só à espera da próxima chamada, cada vez que precisam de nós, falam em nós, é aqui que nos vêm tocar à porta. É esta a nossa última morada e que bela morada, esta tem sido.
Não imaginam a minha alegria quando após morrer, abri os olhos e vi Tebaldo e Páris olhando para mim de uma forma benevolente, pedindo desculpa por tudo o que tinha acontecido entre nós, explicando-me que a culpa não era deles, nós eramos simplesmente uma essência, a essência Shakespeariana. Não foi muito difícil de compreender, (já que todos nós tinhamos falado com o nosso criador) mas no momento seguinte senti uma mão no meu ombro, era a de Mercúcio e logo a seguir vi Julieta a materializar-se e a abraçar-me. Oh, que felicidade!
Mas a minha história não acaba aqui, nem assim. Após estarmos todos juntos contámos uns aos outros o que tínhamos vivido, e fizemos daquele local a nossa segunda casa, isto porque de vez enquando somos chamados por alguém (leitores, encenadores, espectadores, ouvintes), mas no fim cá nos encontramos todos. Mas não pensem que este limbo é só de personagens da minha história ou época, não!
Se querem saber fiz por aqui amigos, alguns dos quais bastante interessantes. Um dia estava a passear com Julieta, quando um desconhecido ofereceu-lhe uma rosa. Eu estava pronto para desembainhar a minha espada, mas Julieta não aceitou a flor, levou-me à razão e continuámos a andar. O estranho correu atrás de nós pediu-nos desculpa e passamos uma tarde inteira a falar com ele. Ele também é um fidalgo, chama-se D. Juan e é espanhol. Disse-nos que passa a vida (literalmente) à procura da mulher ideal, até hoje sem sucesso, vemo-lo pouco, mas sentimos pena dele porque para mim e Julieta foi fácil encontrar o verdadeiro amor, para ele nem por isso. Somos também muito amigos de um casal italiano: Dante e Beatrice, se bem que já nos confidenciaram que o nome verdadeiro dela não é Beatrice, no entanto teimam em não nos dizer o nome verdadeiro, sabe-se lá porquê. Eu morri por amor a Julieta mas este homem foi ao Inferno resgatar a sua amada, dão-me arrepios só de pensar em tão horrível local, mas analisando o caso, foi mais difícil ir até ao reino de Mefistófeles do que engolir um frasco de veneno. Tenho um grande respeito por este homem.
Está cá também um português, Carlos da Maia é o seu nome, contou-nos a sua triste história, ia casando com a sua irmã. Os leitores dirão que este mundo é louco, não sei. É o meu, só posso fazer o melhor que puder para me sentir feliz nele. Mas não há dúvida que é um mundo rico, existem pessoas/personagens de todo o mundo, de várias épocas, todos nos damos bem, devemos isso aos nossos autores.
Mas antes de acabar sinto a obrigação de vos contar algo que aconteceu no mês de Abril em 1616. Estávamos cá todos no limbo, aparentemente ninguém nos lia nessa altura, quando fomos levados por algo ou alguém para uma sala branca enorme juntamente com outras personagens, algumas bastante importantes: o rei Lear, o rei Henrique VI, o rei Ricardo III, o rei Oberon e sua esposa, a rainha Titania. Júlio César. Hamlet. Otelo. E todas as outras personagens de Shakespeare. Aí ouvimos então uma voz, como que a voz de Deus que nos dizia: «Eu parto, mas não morro, vocês são a minha essência, criei-os com a minha imaginação. Amigos, inimigos, amantes, traidores, cada um tem a sua natureza mas todos são a minha essência. Eu não morro enquanto vocês existirem.»
Compreendemos aí que o génio que nos criara tinha morrido, não o meu pai, mas o meu Pai, o meu Verdadeiro Pai. Não fizemos um minuto de silêncio, mas antes um minuto de verdadeira alegria, não porque estivessemos contentes, mas porque achávamos que era a melhor homenagem que lhe podíamos dar, não o silêncio, mas um …morreste, mas para morrer é necessário nascer e ao nascer trazias já o génio para nos criares. Obrigado.
Ficámos orfãos, mas felizes por fazer a vontade a nosso pai para sempre. Eu não sou escritor, sou uma personagem, mas convivendo aqui com tantas outras personagens, sinto-me como se lesse um enorme livro que começou quando o primeiro homem escreveu algo e terminará quando o Homem morrer.
FIM

Friday, June 10, 2005

Automitografia (pt3)

Os Montecchio e os Capulleto há muito que tinham os seus rancores, tudo era desculpa para uma zaragata, o mais pequeno gesto ou olhar dava origem a um espectáculo, não poucas vezes manchado de sangue e violência.
A minha morte e a de Julieta (ah doce Julieta) levaram, ao menos, ao fim dessa inútil disputa, disputa da qual nenhum dos lados se lembrava da origem, tinha-se tornado mais uma desculpa para alguns se afastarem do seu dia-a-dia! Os próprios criados criavam zaragatas entre si! Isto, claro, para que os seus amos não fossem humilhados, pois! Farto de tanta desordem, ainda por cima criada por duas das mais influentes famílias da cidade, o príncipe «explodiu» e ordenou a pena de morte para quem mais uma vez disturbasse a paz da cidade.
Não pretendo ser historiador mas, se a memória não me falha três guerras civis tinham sido desencadiadadas pelas minhas duas famílias.
Mas deixemos, por enquanto, estes factos históricos e familiares e passemos a um resumo das minhas “actividades”. Tinha nesta altura dezasseis anos e tinham os meus olhos passado por uma certa donzela de seu nome Rosalina, o meu coração, pensava eu, tinha acelerado, os meus olhos nunca tinham visto nada igual e eu senti-me apaixonado. Disse-me depois Frei Lourenço «…o amor dos jovens não reside no coração, mas sim nos olhos.». Na impossibilidade de chegar ao objecto do meu amor, fechava-me em casa, no meu quarto, tornando o dia em noite, única altura em que conseguia sonhar, e sonhava com ela. O meu querido primo Benvólio e o meu fiel amigo Mercúcio querendo-me são e não doente convenceram-me a ir a uma festa dada pelos rivais de minha família para que eu visse que o que eu sentia não era senão uma atração. Querendo-me salvar do amor puseram-mo como se de uma corda no pescoço se tratasse. Andando pelo salão, tentando encontrar Rosalina com os meus olhos, vi a mais bela mulher de que o mundo tem lembrança, Julieta! Dizem que só se começa a viver depois de amar, eu pensava que já tinha começado a viver antes de conhecer Julieta, mas não!
Só a partir do momento em que os meus olhos a viram, é que o meu coração começou realmente a bater. Senti-me como que… Já amaram realmente? Sim? Então sabem o que quero dizer, há coisas que as palavras não conseguem exprimir, esta é uma delas. Mais vale viver do que sentir. Posso dizer que no momento em vi Julieta senti que o meu coração me tinha enganado até aí, era impossível eu ter amado … ah! Rosalina.
Não podia partir sem a ver mais uma vez, sem lhe dizer o que sentia. O meu coração já tinha inscrito nele o nome de Julieta! Meu pai diz que nessa noite vi o meu sol na varanda, e quem melhor do que ele para exprimir o que nós por vezes não conseguimos? O meu sol, nem menos, só mais do que isso. Julieta tornou-se nessa altura o meu sol, o meu norte, a minha razão de viver e morrer. Até de morrer, ah! como eu a amava, e amo ainda hoje. Falando com ela nessa noite na festa e mais tarde no seu jardim, , para saber se ela também me amava, soube que o meu sentimento era retribuído. Dirigi-me a Frei Lourenço para que nos ajudasse, a nossa ideia era que ele nos casasse o mais depressa possível. Frei Lourenço pessoa a quem eu considerava um segundo pai disse que sim e que tentaríamos juntar o útil ao agradável, tentando que com o nosso casamento saísse a declaração de paz entre as nossas duas famílias. Fomos casados por Frei Lourenço, mas não posso esquecer a ajuda da fiel ama, que amava Julieta como se sua filha se tratasse.
Após o casamento e extasiado de tanta alegria, procurei Mercúcio e Benvólio para com eles a partilhar, encontrei-os na praça pública onde com Tebaldo se preparavam para lutar pela simples razão de um ser de uma família e o outro da outra. Tebaldo envolve-se com Mercúcio que tenta defender o meu nome e mata-o.
Mercúcio, meu querido e fiel amigo, amaldiçoa as duas casas, expirando. Eu desvairado trespasso Tebaldo com a minha lãmina. Tebaldo é morto, sem saber, por um familiar seu.
Após tudo isto esperando a morte, ganho o desterro.. Nessa noite fui ter com Julieta e tivemos a nossa única noite de casados, de madrugada fugi para Mântua. Foi também nessa noite que Julieta me disse que seus pais preparavam o seu casamento com Páris. No meu desterro tive um sonho que me sobressaltou, embora o não compreendesse corretamente naquela altura, a minha esposa veio ter comigo, eu estava morto mas ela beijando-me deu-me a vida. No dia seguinte Baltasar disse-me que Julieta tinha morrido, comprei então um veneno para morrer com ela. Não sabia nessa altura, só o soube depois de morrer, que Julieta estava apenas dormindo. Cheguei ao cemitério, para morrer junto da minha esposa, e aí encontrei Páris que não compreendendo a minha presença naquele lugar quis duelar comigo, momentos depois estava caído no solo morto pela minha espada!
Aproximei-me do túmulo (levando comigo Páris que tinha pedido que o colocasse no mesmo túmulo de Julieta) onde estava deposta Julieta. E como ainda a achei bela naquele momento! Chorando, levei o frasco de veneno à boca e bebi-o sentindo-me rapidamente inerte e ouvindo o meu coração bater cada vez mais lentamente, foi aí que morri e é aí que chegamos à minha terceira e última vida - a do limbo literário.

Thursday, June 09, 2005

Automitografia (pt2)

E assim nasci no ano de… esqueci-me! Ou talvez nunca tenha sabido.
William dizia-me que nem tudo era importante, se a peça tivesse qualidade, e as dele tinham, o público guardaria algumas personagens no seu coração, deste modo para uns nasci num ano, para outros noutro. Houve uma jovem que me imaginou precocemente a quebrar corações aos nove/dez anos, ainda hoje penso que me confundiu com o D. Juan!
Com o tempo aprendi que não precisamos (nós, as personagens) de termos toda a nossa vida escrita, determinada. Não é só o escritor que possui poder, nós também sonhamos, e quando o escritor nos dá um dia de férias na obra, podemo-lo utilizar para o que quisermos, o público nunca saberá. Eu, por exemplo, adoro imaginar/escrever a minha vida antes da obra de meu pai. A vida é minha, posso escrevê-la se quiser, ora!Se não concorda pense nisto, por acaso sabe o que fiz enquanto estive em Mântua? Shakespeare nada vos diz acerca disso, pensam que terá sido esquecimento?
Nasci no ano da Graça de Nosso Senhor de 1595, filho único nascido no seio da família Montecchio. Como a maior parte das crianças tenho as mais belas recordações de meus pais. Lembro-me de meu pai colocar-me no seu colo e contar-me histórias, contava-me apaixonadamente dos nossos antepassados e também daqueles que viveram em Verona, meu pai romanceava a construção do anfiteatro romano e como eu ficava maravilhado com a força de vontade e inteligência daqueles romanos que partindo de uma pequena região ocuparam o mundo conhecido quase todo.
De minha mãe fiquei com a imagem de alguém temente a Deus, que me amava e me acarinhava, sempre que possível. Lembro-me de um dia em que com oito ou nove anos e passeando com um aio vi um raposinho, segui-o com todos os cuidados, não muitos já que a início parecia que ele queria sobretudo brincar, quando o vi esconder-se debaixo de umas moitas, o aio com medo de que algo me pudesse acontecer tentou impedir de me acercar mais, mas eu criança vendo pela primeira vez um raposinho vivo era consumido cada vez mais pela novidade e curiosidade. “A curiosidade matou o gato” diz o povo e eu só não morri porque o meu aio estava atento com medo que algo me acontecesse, isto porque das moitas surgiu um vulto, era a raposa mãe que ferida, tentava ainda proteger a sua cria. Vendo aquele vulto aproximar-se Alfredo, o meu aio desviou-me e puxou-me para trás, fazendo-me compreender que necessitaríamos de algum cuidado para que nenhum mal acontecesse. A raposa, no entanto, vendo-nos recuar, recuou também para o seu refúgio onde se deitou lambendo a sua ferida e dando, ainda assim, de mamar ao seu filho. Esta história ajuda a ilustrar a relação com a minha mãe enquanto petiz, mesmo extenuada (e não ferida, como na história) ou com algo mais para fazer a minha mãe estava sempre pronta para me proteger, alimentar física e espiritualmente, explicando-me sempre o que lhe pedia, mostrando sempre uma paciência infindável para o miúdo irrequieto que eu era.
Foi por volta dos meus doze anos que se juntou a mim e a Benvólio, meu primo e já companheiro de algumas aventuras, Mercúcio parente do Príncipe e meu fiel amigo. Começou nessa altura uma cumplicidade tamanha que iria terminar com as nossas mortes, pelo destino Benvólio foi o último a morrer, morrendo já velho com o desgosto dos seus dois grandes amigos não poderem estar com ele nos momentos de felicidade, tais como o nascimento dos seus dois filhos (valentes varões) e da Rosa do seu coração, bela fidalga como nunca os Montecchio tinham visto (nem minha mãe era tão formosa e como era minha mãe bela!).
Com Benvólio e Mercúcio lembro-me de ir a cavalo para o Lago Garda, a menos de quarenta quilómetros de Verona, ao princípio da manhã, abrigando-nos do frio, quando caso disso, mas indo sempre para um local secreto, falando sempre disto e daquilo, tomando banho, pescando e fazendo mil e uma coisas que só os jovens têm paciência para fazer.
Embora fôssemos grandes amigos, fomos trespassados por algo que cruza qualquer relação de amizade, o amor. Talvez fosse eu o mais propenso a apaixonar-me , não sei, apaixonei-me ou fiz que, por uma jovem florentina que estava de passagem. O amor era nulo, a atração já o não era tanto e sempre era desculpa para umas complicaçõezitas, os rapazes não podem ser completamente santos, fica(va) mal. O pai dela vendo que certo Montecchio pairava sempre por sua casa, e sendo ele amigo fiel dos Capulleto arranjou maneira de me magoar (pensava ele), marcando casamento entre sua filha e um Capuleto e convidando-me para o casamento como sinal de desplante, ora eu que nessa altura teria os meus catorze anos, nem fiz caso e no dia do casamento fui para o Lago Garda, onde fiquei alguns dias. Benvólio tinha-me feito companhia durante todo esse tempo, enquanto Mercúcio tinha ido ao casamento, quando chegámos a casa e deixando os cavalos a descansar, aparece-nos Mercúcio rindo e gracejando porque nunca tinha visto noiva mais triste, “ e já as vi tristíssimas, mas nunca como esta”, contou-nos então que a rapariga estava apaixonada por fidalgo de Florença, que já se tinha decidido a pedir sua mão a seu pai, mas seu pai, temendo um avanço meu, metera na cabeça que ela deveria casar com um Capuleto, este já com alguma idade e com tal cara que dinheiro nenhum lhe comprara ainda mulher. A pobre moça estava desconsolada e eu deveria temer pela minha pele repetia-me Mercúcio com alguma dose de preocupação, preocupação que se mostrou infundada já que nada aconteceu. Mercúcio confidenciou-me mais tarde que tinha medo que o florentino viesse ver a sua antiga amada e eu fosse dado por culpado daquela situação. Ao que sei o florentino casou com uma rapariga mais bela e com maior dote, da rapariga a última notícia que tive era que estava aumentando a sua descendência a olhos vistos.
A minha vida anterior foi assim alegre, amado e protegido na infância, despreocupado e com alguma dose de loucura na adolescência. Foi então que meu pai me retirou a acção e colocou-ma na ponta da pena fazendo da minha vida uma das mais famosas tragédias de sempre, desta minha vida já vocês têm (espero) um certo conhecimento mas serei fiel ao propósito de contar a(s) minha(s) vida(s) e darei a minha visão dos factos.

Wednesday, June 08, 2005

Automitografia (I)

Este já foi publicado em dois ou três blogs. O pessoal diz sempre que é um pouco grande.
Como é óbvio tinha de o publicar aqui, foi escrito para um trabalho ou como trabalho para História das Ideias.
Neste momento dedico-o ao Mário Gil que um dia leu umas linhas e pediu-me para o ler todo. Eu não o tinha comigo na altura e por isso, esperando que ele o leia aqui (Mílton, dá-lhe o link) posto-o aqui. E por capítulos!

Vós que nasceis de ventre humano, dai graças! Pelo quê? Têm um mínimo de liberdade nas vossas vidas, enquanto eu……
Não nasci de ventre, mas de intelecto humano ou se quiserem da ponta de uma pena. O meu nome? O meu pai era um génio, actualmente é mesmo considerado um clássico. Tal como eu, mas…Não tive a “sorte” de “nascer” como personagem de uma comédia ou algo mais leve, meu pai e criador concebeu-me de uma forma mais altiva: «Chamar-te-ás Romeu, e serás personagem de uma tragédia, aí terás de sofrer por amor, mas serás recordado para sempre com carinho e respeito, tal como eu, (espero)». As palavras foram mais ou menos estas, desculpem-me os puristas mas a idade pesa e a memória enfraquece.
Mas comecemos, parte da minha história já vós conheceis e é a única coisa que normalmente sabeis de mim, é o que vos interessa, o resto é…a minha outra vida, uma delas, pelo menos!
Já que perguntam são três!
Uma, é a anterior à peça, ou seja tudo o que vivi que não interessava ao ávido público de teatro; a segunda, todos os que leram a peça conhecem; a terceira é aquela vivida aqui, neste local a que me habituei a chamar de limbo literário. Mas avancemos que terei oportunidade de falar um pouco dessas três vivências.
Sentado na areia olha o mar.
O verão já passou há muito. A praia está deserta. O vento frio irrita-o. Fecha a mão num pouco de areia. Inclina-a e vê a areia a passar-lhe pelos dedos. Tantos planos, tantas ideias - o futuro já estava feito, antes mesmo de...
Levanta-se e caminha até à água.
Grita contra o fado, destino, pathos, o que quer que seja que lhe estragou a vida. Fica ali parado durante alguns minutos. O vento seca-lhe o rosto.
Baixando-se agarra em mais alguns grãos de areia. Abre a mão e vê o vento sacudi-los. Olha para a mão e sorri. Há grãos de areia que não foram levados pela força eólica.
"Vou ser um destes grãos de areia, seguro apesar da violência das circunstâncias."

Tuesday, June 07, 2005

Sentou-se à mesa, acendeu um cigarro e pensou na história que imaginara.
Enquanto fumava via as personagens, a acção, os motivos. As palavras passeavam à sua volta. Levantou-se e foi para junto do computador. Olhou para o teclado, ia a sentar-se quando o telefone tocou. Atendeu e saiu rapidamente de casa.
Voltou horas depois, cansado e esfomeado. Depois de comer, sentou-se ao computador. A história já não fazia sentido, não tinha a mesma força. A alegria de pensar na narrativa tinha-se desvanecido.
Sentou-se a ver, estupidamente, televisão. Deitou-se e adormeceu. Sonhou, sonhou com acontecimentos naturais mas, ao mesmo tempo, fantásticos. Ao acordar tentou pôr em ordem o onírico da coisa. Não conseguiu. Desanimado pensou: - Nunca vou escrever nada de jeito!
Deitou-se a pensar em novas histórias…
Deitado na penumbra do quarto, descansa do acto. Vai afagando o corpo da companheira.
Está quase a cair no sono quando a ouve dizer : "Tenho sida!".
Num instante acorda, e pensa em como se viu nesta situação. A noite começara num dos bares in da cidade. Tinha ido só, mas saíra acompanhado.
Uns olhares aqui e ali, um copo pago e um convite acabaram a caminho de casa no carro. Daí para a cama tinha sido um pulo. Quem pensa em proteção ou em outra coisa qualquer? O álcool nos organismos também ajudara.Mas... sida? e porque só agora? e porquê dizê-lo assim?
Apeteceu-lhe gritar, sentiu-se enojado, com azia.
Foi então que ela repetiu o que tinha dito: "Tenho sede".
Estupidamente, conseguiu dizer: "Uh?"
"Tenho sede, repetiu ela, podes ir buscar-me um copo d´água?"
"Cla- cla-cla-claro!" conseguiu balbuciar.
A tremer, mas aliviado, foi até à cozinha...

Monday, June 06, 2005

Fim de tarde

A noite começa a reinar, a escuridão vai preenchendo a sala. Sentado, cansado e entorpecido ouve a música que vagamente sai do rádio. O dedo acompanha, com dificuldade, o ritmo. A custo consegue perceber a letra. Começa apensar no que está a ser cantado. Chega à conclusão de que a música nada diz. Farto de trabalhar, ri-se como outros ganham a vida com pequenos nadas. Devagarinho, vai até à casa de banho onde enche a banheira de água.

O Passeio

Sorri e corre dum lado para o outro. Sente-se livre. Está farto de estar em casa e passear num centro comercial é uma novidade e ao mesmo tempo uma aventura. Corre duma montra para outra. Vê brinquedos. Pede com os olhos e com palavras. Excitado, espera por uma resposta.
O pai, farto da balbúrdia semanal, sorri rangendo os dentes. Lembra-se dos passeios com o pai ao campo. Aí sim, brincava, jogava à bola, corria, aprendia a ser criança.
Olha tristemente para o seu filho! Sorri e pede-lhe calma.
A mãe procura, atenta e lentamente, uma prenda para a sogra. Farta-se dos gritos do filho. As suas corridinhas e gritinhos cansam-na. Dentro duma loja, a mala empurra umas canecas para o chão. Paga-as a contra gosto.
Cinco minutos depois o puto corre até ela e pede-lhe um brinquedo que vê numa montra. Pensa nas canecas e puxa o braço atrás. Dá-lhe uma bofetada, que o apanha desprevenido.
“Tou farta de ti! Porta-te bem.”
Uma lágrima cai, sorrateiramente, pelo rosto do catraio. A chapada magoou-o. Mas não na cara.

Sunday, June 05, 2005

Breve Texto Sobre a Brevidade

Ao lado dela os carros passam numa correria desenfreada.
Pensa na sua vida. Está farta dos pais, sempre a ditar ordens. Do namorado, que só lhe liga quando quer. De procurar emprego, sem sucesso. Dos amigos, que desaparecem quando ela precisa deles.
Olha para o céu. Vê o sol e a lua.
Duas crianças passam por ela, a correr e a brincar seguidas por um cãozito.
Recebe uma mensagem no telemóvel. Uma amiga diz que está lá para o que for preciso. Sorri.
Há tantas razões para viver. Avança em direcção à estrada, ouve o apito e é atropelada pelo táxi. Chega já morta ao hospital.