Friday, February 01, 2013

Cada vez que entra no escritório lembra-se do pai, que morreu quando tinha dez anos, de estar sentado nos seus joelhos, um pai de sorriso fácil, mas de olhar duro, quando era necessário. Lembra-se de tê-lo ao seu lado, no sofá, a ver os desenhos animados, de lhe dar a ouvir algumas músicas, de jogar à bola e fazer puzzles com ele.
Entrar no escritório é pouco exorcizante, nada mesmo, cada vez que entra naquele espaço parece que ele vive ainda ali. A mãe pouco mudou ou alterou as coisas, um mausoléu quase, as mesmas estantes, os mesmos livros, os dois posters de filmes antigos, um de Howard Hawks, outro de Hitchcock, “roubados” a pedido num já desaparecido cinema de Lisboa.
Cada vez que entra no escritório lembra-se do pai a ler, a ler livros, revistas, jornais, a ler-lhe livros, para crianças ou não, livros que o ensinaram desde cedo a sonhar, a sorrir, a saber sentir. Livros que lhe ensinaram palavras novas, expressões desusadas ou recentes, em português ou noutra língua qualquer. Cada vez que olha para os livros lembra-se do pai e talvez por isso aprendeu a odiá-los após a morte do progenitor, como se a culpa da ausência, da morte, fosse deles, uma reação pessoal e inusitada à ausência dele.
O escritório é limpo religiosamente pela mãe, uma vez por semana, ao som de um dos cds do pai, hábito, este último, que lhe faz confusão. Pela primeira vez em algum tempo olha para as lombadas dos livros, amarelecidas pelo sol que entra todos os dias pelas duas janelas do escritório, livros, apercebe-se agora, que desvendam um pouco o homem que já esqueceu, recriou e que se revela nas histórias familiares, já um pouco míticas. Estes livros desvendam um pouco e de forma imperfeita os gostos do pai, se os comprou devia querer lê-los, não?
Nesse sábado acordou cedo, o sono fugiu-lhe, apesar de se ter deitado tarde. Entrou, sem saber bem porquê, no escritório, despenteado, enramelado, e parou algum tempo a olhar para os livros que sempre ali estiveram. Livros organizados por ordem alfabética, nas estantes superiores os autores estrangeiros, nas centrais os de expressão portuguesa, nas estantes inferiores os livros técnicos, de ciências, política, crónicas, etc. Independentemente desta organização o pai aproveitava qualquer espaço livre para colocar outros livros, os de bolso, ou outros que talvez não lhe interessassem tanto, há poucos espaços por preencher, graças à mãe que vai cristalizando aquele espaço numa memória perene do esposo.
Quantos teria lido? Quantos teria deixado por ler? Teria relido algum? Retira um livro um pouco ao calhas, um título mais apelativo, de autor desconhecido, sul americano, aparentemente, ao lado deste mais cinco livros do mesmo autor, dois deles em versão original. Abre-o, folheia-o sem grande interesse e repara em alguns sublinhados, algumas notas, na última página há um poema, escrito pelo pai à sua mãe, sem data. Lê e relê o pequeno texto, ignora poetas, poesias e estilos, talvez por isso não o acha grande coisa, mas sente o ardor da descoberta, um pouco do pai ali escondido. Coloca o livro de parte, decidindo lê-lo depois. Procura com os olhos e retira mais um livro, parece-lhe incólume, a lombada está intacta, não dá por notas ou sublinhados, somente um autógrafo da autora, “Para o Vasco, que me ensinou muito do que sou e sem o qual este livro não existiria”, não reconhece o nome da autora, olha para a fotografia na contracapa e pensa como era bela, teria sido sua aluna?
Sempre encarou os livros como uma herança material do pai, agora parece-lhe que estará um pouco ali o imaterial, as notas, apontamentos, escritos e o que mais possa encontrar podem ajudá-lo a conhecer melhor o pai, ou parte dele, pelo menos. Os livros sempre foram, já lhe disseram imensas vezes, parte essencial do Vasco, do Vasco que aproveitava cada segundo livre para ler, que levava livros e mais livros de férias, que lia no barco, em casa, no café.
Retira mais um livro, mal tratado, manuseado quase até à exaustão, sintoma do uso que lhe foi dado, capa gasta, algumas páginas com cantos dobrado, às vezes o canto superior, outras o inferior, nódoas de comida, o círculo de uma chávena de café, apontamentos, linhas que comentam o texto, outras que parecem ser pensamentos ou notas sobre tudo e nada. Na página 55 sobressalta-se, “Vou ser pai!”. Emociona-se, debaixo das três palavras há uma data, seis meses antes de ter nascido. Serão estes livros um diário “cadavre exquis” do pai?
Em uma hora descobre fotos, recibos, marcadores feitos pelo pai, utilizando toda a espécie de materiais, folhas de jornal, folhas de árvores, calendários, pacotes de açúcar. Os livros apresentam resquícios e marcas de terem sido abertos, lidos, habitados por alguém ou talvez tenham habitado, é mais provável, o pai. Levanta-se, “quem sabe se não estarei a dar demasiada importância a coisas que não a têm”, mas sente que o pai está novamente ali presente, uma nova imagem, uma recordação mais completa, será essa a razão da proteção e manutenção do espaço feitas pela mãe?
Sai de casa, para almoçar, alterado, não consegue explicar o que mudou. Nessa tarde comprou pela primeira vez em muitos anos um livro para si.

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