Wednesday, October 03, 2007

Acorda.
São seis da manhã, ainda falta meia hora para o despertador tocar, a bexiga antecipou o acordar.
Levanta-se e vai até à casa de banho ainda com algumas sensações e imagens do sonho que foi interrompido. Faz um esforço para tentar montar o puzzle onírico.
Ele e a namorada. Visitam alguém, mas depois a namorada desaparece de cena.
Há uma rapariga familiar, lembra-se de um desejo de a rever e falar com ela. Fez-lhe um convite para beber um café, convite que ela aceitou.
Encontram-se numa rua apinhada de cafés, por alguma razão, invisível, não conseguem entrar em nenhum. Chove, e os cafés encontravam-se abertos, todos eles. Correm para o carro (de quem é o carro?). Entram, mas ela vai para a parte de trás, entram três gigantes abrutalhados e preenchem os lugares que faltam.
Sorriem, falam, dão-lhe pequenos estalos, sente-se avisado, mas não sabe de que é que o estão a avisar.
Ela, lá atrás, ri, não é um sorriso, é uma risada.
E foi quando acordou. Gosta de tentar relembrar-se dos sonhos, sabendo que adormecido os sonhos fazem mais sentido do que quando está acordado. Há um universo de leis que são obedecidas quando se está dormindo. Quando se acorda nem tudo faz sentido, ou quase nada.
Sabe que à noite a maior parte destes pormenores ter-se-ão perdido no seu inconsciente.
Deita-se novamente, afinal ainda falta meia hora até ao despertador tocar. Sabe que dificilmente adormecerá. Tem o vago desejo de reecontrar os caminhos do sonho, espera uma sequela ou repetição do mesmo.
Lembra-se de em criança ter um sonho recursivo e repetido. O sonho, de que não se lembra claramente, era uma repetição de algo anormal, e que ao mesmo tempo, e se calhar por isso mesmo, lhe metia medo. Lembra-se de com seis ou sete anos acordar lavado em suor, e com medo de voltar a fechar os olhos.
Agora que pensa nisso lembra-se de sonhos em que queria correr e não conseguia. Por mais que tentasse o corpo só obedecia em câmara lenta. Ninguém corria atrás dele, ele não fugia de nada ou ninguém, mas a angústia de não andar normalmente, a angústia de esforçar todo o corpo e os músculos para dar um passo normalmente. Lembra-se de acordar extenuado e dorido.
Levanta-se com o toque do despertador, não adormeceu sequer.
Sente-se nostálgico, e atribui a culpa ao sonho. Como é possível sentir-se nostálgico por alguém que não reconheceu? Por alguém sonhado? Estará o seu subconsciente a transmitir-lhe alguma mensagem?
Durante todo o dia sente-se incompleto. Se há coisa que o aborrece é não saber dar nome a alguém, ou situar alguém, passa largos minutos a tentar descobrir de que filme conhece aquele actor, de onde conhece aquela pessoa que lhe sorriu e perguntou como ia. Hoje é o sonho que o inquieta.
Tenta fazer um inventário de namoradas, paixões e platonices parecidas.
Vai de autocarro a pensar nelas. Janta com a namorada e dá-lhe menos atenção que habitualmente. Ela pergunta-lhe o que se passa. Responde que nada e permanece ali, entre a realidade e o onírico, tentando fazer uma relação que o satisfaça.
Chega a casa e deita-se, esperando que a cama o ajude a relembrar-se de alguma coisa. Tenta fazer o exercício contrário, em vez de se lembrar das namoradas tenta relembrar-se da rapariga do sonho. Nada. Lembra-se que os olhos o marcaram, mas acha que era mais porque lhe abriam alguma porta para a memória. Volta à lista mental, nenhuma delas tem olhos que o tenham marcado especialmente.
Olhos….olhos…olh…
Adormece.
Acorda sem se lembrar de alguma experiência no império de Morfeu.
Age segundo o seu ritual. Lava-se, veste-se e mete-se no carro até ao comboio. Leva um livro que não consegue ler, a rapariga sem rosto assalta-lhe constantemente a memória.
O trabalho, naquele dia, não rende. Os colegas acham-no mais distante, menos brincalhão e concentrado do que habitualmente.
A namorada telefona-lhe à hora de almoço a perguntar como está, que não lhe telefonou de manhã. Sente preocupação na sua voz. Diz que está cheio de trabalho, desculpa-se com isso para a despachar e dizer-lhe que só a verá no dia seguinte.
Esqueceu-se da namorada nestes últimos dois dias, se não tivesse jantado com ela nenhum pensamento teria tido em que ela aparecesse.
Anda obcecado com a rapariga irreal. Como é que um sonho pode alterar a vida exterior e interior de alguém?
Passou-se uma semana.
Nesta semana comeu pouco, quase nada; discutiu fortemente com a namorada a meio da semana. Às 22h ela telefonou-lhe para saber como estava, já tinha adormecido e começara a sonhar.
Acha que estava a sonhar com a rapariga do sonho quando o toque polifónico com a música I Want you to Want me o acordou, gritou com a namorada, não lhe deu possibilidade sequer de se desculpar, ainda que não existisse razão para isso. Não voltou a sonhar, nem a falar com ela. Cada vez que o telemóvel toca ele desliga-o.
O telefone, em casa, está desligado da ficha, e o telemóvel já quase que não é ligado.
Ontem, alguns amigos estavam à porta de casa com a namorada, mal-humorado espantou-os com fel. Contou algumas verdades desconhecidas de alguns, não se importa que tenha aberto brechas no grupo, espantou-os com a sua (até aí desconhecida) hostilidade.
Vive para alguém que não conhece, que não tem existência. Não pensa na estranheza disto tudo.
Adormece e encontra o objecto da sua obsessão num sonho. Finalmente, ela sorri-lhe e rapidamente o sorriso torna-se num esgar de maldade. O corpo treme-lhe, qual corpo?
Tenta fugir, mas não consegue. Ela aproxima-se dele, que tenta fugir, mas o mais que pode é fazê-lo em câmara lenta.
Encontram-no dois dias depois, deitado, de barriga para baixo, num coma profundo, com um ar de tristeza absoluto. Não reage a nada. De vez em quando grita, por breves segundos, mas um grito que assusta quem o ouve, um grito que relembrarão toda a vida, curta ou longa que seja.
Mais valia estar morto, mas não está, está adormecido, na presença da sua obsessão por uma breve eternidade.
Pós-Título: Os Três Gigantes
Publicado no nº2 da Callema

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